6.11.2015

Felicidade em Cápsulas: Relações Digitais e Ilusão.

Edvard Munch, Melancholie (1894)
Vivemos em uma sociedade cada vez mais exigente, onde ser uma pessoa “comum” se torna tarefa cada vez mais árdua. O sujeito perdeu o controle até mesmo sobre seus humores. A exigência atinge níveis cada vez mais alarmante, já que em uma sociedade movida pela imagem da felicidade a tristeza perde cada vez mais espaço.

É incrível como somos envolvidos cada vez mais em teias de relações frágeis, porém devido ao grande número elas nos transmitem a sensação de completude. As relações mediadas são fracas, já que o intermédio sempre distancia os sujeitos que buscam comunicar-se. As inúmeras relações diárias possibilitadas pelo uso da tecnologia, transmitem a falsa sensação de contato, pois em todos os lugares podemos “falar” com alguém, usando um dos modelos mais simples de celulares existentes no mercado. Essa profusão de opções levam ao contato diário, com inúmeras pessoas, número de relações esse que, jamais seria possível sem as facilidades da tecnologia. Isso ocasiona uma necessidade diária de interação, contato esse que com um número muito além do suportado, nos direciona para contatos superficiais. Cumprimos as tarefas diárias com os nossos dispositivos móveis a mão, onde um simples minuto se torna um momento oportuno de interação.  

Na impossibilidade de dar conta dessas infinitas relações o sujeito atual não percebe que os espaços que possibilitem a solidão se tornam quase inexistentes. A cada segundo a interação momentânea é solicitada, assim nos distanciando cada vez mais de um autoconhecimento. Vivemos imersos em relações, porém sem a possibilidade de refletir sobre as mesmas, a presença expandida do homem moderno possibilita uma onipresença da ação, onde temporalidade e espacialidade se expandem a níveis que a consciência humana parece não acompanhar. A anulação da interioridade caminha, o homem atual pode encontrar-se em vários lugares, mas dificilmente consigo mesmo.  

Edvard Munch, Der Schrei (Tempera, 1893)
O facebook -como a tradução literal da palavra diz- é realmente um livro de faces, o problema é que por entre esses rostos só há espaço para faces felizes, as mais "interessantes" (Geralmente adequados a um padrão externo). Se fosse um livro estático não haveria problemas, porém devemos compreende-lo como um livro mutável, não havendo fixação, a interação é o que o move. Demonstrar cenas de felicidade e satisfação torna-se uma premissa básica, e sua mutabilidade exige a constante atualização de imagens de satisfação. Não basta dividir o cotidiano feliz uma única vez, as imagens apresentadas devem ser atualizadas incessantemente. Podemos questionar se seria possível escrever uma boa história apenas com cenas felizes.

A atuação, enquanto exercício, sai cada vez mais dos palcos e se coloca como tarefa cotidiana.  O jogo cênico é presente nas mais diversas esferas da sociabilidade, mas o individuo transitava livremente entre essas várias esferas, podendo se colocar inteiramente em locais específicos de sua convivência. A absorção de grande parcela da população na era digital, fez com que as pessoas se perdessem desses lugares de “verdade”, já que sua interação é diluída nas inúmeras interações digitais, e essa primazia pelo digital ocasiona o esvaziamento daquilo que chamo de relações analógicas. Para clarificar minha ideia vamos pensar na diferença básica entre digital e analógico, e então voltamos para nossa discussão, simplificando:

Conversas com o uso de voz através de dispositivos eletrônicos são trocas de sinais anteriormente análogos (comparáveis) captados por microfones, digitalizados, transmitidos entre os dispositivos e então convertidos novamente em sinais análogos para serem reproduzidos por dispositivos de áudio. O processo de digitalização também é essencial para o transporte eficiente de sinais anteriormente análogos. Essa conversão e compressão também torna estes sinais análogos recordáveis, reproduzíveis, editáveis e distribuíveis. Na eletrônica digital, a informação é convertida para bits, enquanto na eletrônica analógica a informação é tratada sem essa conversão. [Wikipédia]


As relações analógicas, vão cedendo um espaço cada vez maior àquilo que ouso chamar de digitalização do eu, onde o centro das nossas relações diárias vão se reduzindo às relações digitais, as quais são possíveis apenas com uso de nossos dispositivos de extensão do sujeito ( aparelhos portáteis que possibilitem interações imediatas não físicas). Nessa construção de uma imagem digital de nós mesmos, deixamos de lado todas as particularidades que não queremos expor, nessa não exposição mascaramos muito daquilo que sentimos, pensamos e fazemos.
Assim vamos entrando em um circulo vicioso, onde todos iludem a si e aos próximos, muitas vezes nem percebendo, mas ficando submersos em um mar de ilusões. Ilusões essas que pautam nossas vidas e relações, onde a felicidade é uma utopia, nada mais que uma simples propaganda, endossada pelo consumismo capitalista. As relações digitais oriundas da digitalização do eu, nos propõe a considerar a existência de uma ditadura da felicidade, onde se espera que sejamos felizes, devendo estar sempre disponíveis para as mais corriqueiras interações.

Edvard Munch, Verzweiflung (1892)
Não é atoa que a muitas religiões ao longo da história elaboram narrativas onde os processos que levam à iluminação passam por um isolamento do eu, onde nesse isolamento o sujeito passa a outro patamar de compreensão de si e do cosmos qual habita. Não to indo na direção de uma fala onde incito o isolamento, falo a favor de pequenos espaços de tempo, pequenos momentos onde ficamos sós. Onde não nos preocupamos com a disponibilidade instantânea ao outro.

Facebook, Whatsapp, Facetime, Skype, Telegran, Snapchat, Hangoout, Instagran, e poderíamos continuar uma lista imensa de apps que estabelecem relações digitais entre sujeitos, porém com a facilidade e a grande oferta dessas ferramentas, seu uso caiu na banalização sem finalidade especifica, onde se busca “passar o tempo”. Quando o tempo de que dispomos é o de apenas uma vida humana, tempo que não volta, que gastamos com relações que não se sustentam. Ao nos aproximarmos dos indivíduos digitalmente, nos distanciamos de nós, na medida em que nossos pensamentos são silenciados pelo grande fluxo de informações desnecessárias cotidianas. 

No vazio da existência adoecemos, na ânsia desesperada por contatos padecemos ficando cada vez mais inertes, vazios e tristes, mas em segredo. O maior agravante dessa situação é a espetacularização dos afetos, onde o esperado são as cenas apresentadas pelo cotidiano midiático. Assim caímos em um ciclo, onde o agravante é mascarado. A encenação da felicidade nos entristece, e quanto mais vemos a felicidade dos outros  nos questionamos sobre a nossa própria, e mais negamos o nosso esgotamento. Aderimos as pilulas da felicidade, assim habitando e reiterando um mundo onde os antidepressivos sempre estão entre os medicamentos mais consumidos.

6.05.2015

Natureza e Equilibrio: Braga e Eija.


Em uma grande cidade como o Rio de Janeiro há inúmeras exposições ocorrendo simultaneamente,  a dinâmica da cidade facilita o deslocamento entre diversos espaços culturais, assim possibilitando uma dialética, onde artistas e obras dialogam entre si, mesmo que tais pontes sejam estabelecidas por particularidades dos expectadores. Sou novo na exploração do cenário artístico e cultural do Rio e me tenho o prazer de ser surpreendido sempre com as possibilidades de exploração que são oferecidas.
Fantasia de Compensação, de 2004
A Casa França Brasil é o espaço onde Rodrigo Braga apresenta o resultado de sua pesquisa sobre a relação entre natureza e cidade. Rodrigo é um artista pernambucano acompanhando por polêmicas, essas quais eu não me deterei agora, já que o foco é o diálogo com outra exposição, porém quem não conhece o artista recomendo uma simples busca na internet sobre sua obra Fantasia de Compensação, de 2004, obra onde o artista se "funde" com um cão morto. Representado pela Galeria Vermelho de São Paulo Rodrigo vem se tornando um dos artistas mais promissores de sua geração.
A outra artista que nos focaremos é Eija-Liisa Ahtila, nascida na Finlândia, onde vive e trabalha até os dias atuais. Os primeiros trabalhos da artista são motivados por criticas às instituições, com uma abordagem feminista, ela já lecionou na Academy of Fine Arts (Finland). Ela trabalha com vídeos, fotografia e instalações, sempre no âmbito da construção da imagem e linguagem, dialogando com a narrativa e espaço. Sua produção recente se concentra na identidade, limite e relações entre sujeitos. Seu trabalho já foi exposto na Tate Modern e no Museum of Modern Art (MoMA). Sua mais recente exposição está no Espaço Oi Futuro- Flamengo.
A exposição Eija-Liisa Ahtila e Tombo trazem a tona questões que se relacionam diretamente com o nosso dia-a-dia, já que vivendo no Rio presenciamos o intercâmbio das relações entre concreto e natureza, natural e artificial, relações essas que passam desapercebidas na nossa corrida diária.
Tombo (2015).
A exposição Tombo, de Rodrigo Braga nos coloca de frente à uma memória já quase apagada, logo na entrada nos deparamos com troncos de palmeiras imperiais mortas, esses corpos mortos centenários podem dialogar com a urbanização massiva que invade o Rio a cada esquina, conversa com obras que não param, cidade redefinida a cada dia. Aqueles corpos nos remetem à uma temporalidade que se foi, uma paisagem que não existe mais. Se corpos biológicos hoje se jazem sem vida, como será que os corpos artificiais que colocamos na paisagem estarão daqui há 200 anos? Talvez uma exposição futurista exponha os restos daquilo que já foi a nossa sociedade fluída e mutável, porém não vamos fazer epifanias sobre o futuro, vamos nos deter no presente e na história que nos é colocada. O estranhamento invade o expectador que entra no espaço, pois a exposição se apresenta sem um caminho pré definido, os caminhos podem ser os mais variados, como na antiga formação espacial do Rio de Janeiro os espaços não são demarcados com suas retas e placas, o convite é para um passeio aberto.
Uma das salas laterais é ocupada por  plantas arquitetônicas da antiga Praça do Comércio, e  relatos escritos de viajantes que encararam a paisagem. A outra sala nos oferece um banquete aos sentidos, onde uma vídeo instalação nos transporta para outra dimensão. O chão é tomado por restos biológicos do habitat das palmeiras, onde somos tocados pelo cheiro de terra e planta tão incomum no cotidiano citadino. O olfato nos ajuda a reconstruir uma narrativa histórica, onde a ambiência criada nos remete para o ambiente modificado. Os olhos testemunham no vídeo o processo de tombamento das palmeiras, o expectador testemunha o processo de criação. O simples fato da retirada das palmeiras do seu ambiente, e sua inserção entre o mármore frio de um espaço alocado no centro de uma das maiores cidades do país mostra como a arte contemporânea é capaz de nos direcionar para um questionamento do espaço e da realidade histórica.
As vídeos instalações de Eija-Liisa Ahtila também pode nos direcionar para um questionamento da relação entre homem e natureza, a artista inicia uma série de pequenos estudos com Fishermen (2010), um vídeo de 5:40 min, onde retrata a atividade de pescadores da África Ocidental. A atividade laboriosa rotineira foi gravada e nos é apresentada no nível 2 do espaço de exposições do Oi Futuro.  A cena se apresenta de forma única, onde a parede frontal é tomada pela totalidade da projeção, e as cores do espaço dão continuidade as águas revoltas do mar. Ao encarar o vídeo novamente somos transportados para uma realidade distante da nossa, onde uma atividade fundamental básica encontraria dificuldades em ser realizada pelos mais hábeis cariocas.
Fishermen (2010)
O horizonte se apresenta como uma meta a ser alcançada, e o esforço empreendido por tais homens parece inútil perante as forças da natureza. A sociedade pós industrial em que vivemos aliena a relação do homem com o meio ambiente e com os alimentos, já que a natureza como apresentada ao morador de uma grande cidade é aparentemente controlada, e seus alimentos não dependem do clima local. O enfrentamento com a natureza para nós já se deu em outros âmbitos, como o científico e o tecnológico. Testemunhar uma atividade laboriosa que ocorreu há cinco anos atrás pode possibilitar a rememoração daquilo que não vivemos. Há cinco anos atrás provavelmente você que está lendo este blog não precisou enfrentar nenhuma fúria da natureza para conseguir alimento, mas duvido que afirme que outros não tenham necessitado realizar tal empreitada.
Sim, sabemos dos contrastes do mundo globalizado, mundo esse que se apresenta a nós com o distanciamento egoísta que move nossa sociedade.  Fishermen nos obriga a encarar o real estatuto ontológico da natureza, onde sua fúria não pode ser aplacada pela força humana. Vivemos em um mundo relativamente estável, porém sabemos que tal estabilidade quando confrontada por reais forças da natureza se revelam tão frágeis como um castelo de cartas.
Os quase seis minutos do vídeo vão de encontro ao questionamento da racionalização da natureza, questionar a realidade cotidiana do homem é possível por meio da obra, sejamos brasileiros, finlandeses ou americanos como aqueles que assistiram o vídeo na Marian Goodman Gallery, NY onde foi exibido originalmente.   Possivelmente os protagonistas da cena não testemunharam o vídeo, foram capturados e exibidos como arte, e na verdade são apenas homens comuns, fazendo uma atividade comum. O comum quando sai de seu lugar de origem pode basear o questionamento de outros “comuns”.
O homem destrói cada vez mais o equilíbrio da natureza, esse é o equilíbrio natural que já é dado, mas abrimos mãos dele em nome de um equilíbrio artificial postulado pela cidade. O que não podemos nos esquecer é que em nome do equilíbrio artificial sacrificamos outro muito mais potente.
Vivemos em uma sociedade distante da natureza, em uma cidade em constante transformação, onde os espaços se relacionam, porém a primazia sempre é do artificial que naturalmente se impõe como parte da dinâmica necessária a nossa vida. Ambos artistas trazem uma outra perspectiva para pensar a relação do homem com o meio hostil em que ele é inserido. Cabe a questão final de repensarmos essa distancia pelo nosso presente, onde o olhar apresenta olhares, e esses olhares mostram algo passado que respinga no presente, assim nos colocando em uma temporalidade impar. A experiência se apresenta como memória e como planojamento, rememoramos algo passado como as cenas ou os objetos apresentados, e como planejamos um futuro onde se pense a relação entre cidade e meio ambiente.  


Sites:


Detalhes sobre Fantasia de Compensação: http://macaxeirageral.net.br/2008/06/10/a-incrivel-historia-do-homem-que-virou-cachorro/