3.23.2018

A explosão da dor

Henry Ford Hospital (The Flying Bed), 1932 by Frida Kahlo.

Nosso encontro foi curioso. Ali, naquele grupo de apoio. A primeira vez que a vi não a enxerguei, foi como olhar em um espelho, e ver apenas eu mesmo, como estava há 6 anos atrás. Eu perdi Nicole em uma noite de natal, a passagem de 2005 para 2006 foi a sensação mais estranha que eu tive pois sabia que ao contrário de todos os anos, quando esperamos coisas boas se apresentarem ao ano vindouro, eu sabia que jamais veria seu doce sorriso. Foram questões de segundos e de repente, o barulho, a virada de pescoço e a roda de sua bicicleta girou pela última vez. Por muitos meses acordava no meio da noite ouvindo o som daquele impacto, o som que silenciou sua risada, e não seria exagero estender ao silenciamento da minha em continuidade.
De repente voltei a 2010 e encarei o ódio no seu olhar, ambos tivemos nossa vida destroçada pela perda do ser que amamos mais do que a nós mesmos, e ali, naquela roda, ela buscava compartilhar sua dor no interesse do fardo se tornar mais leve. Mas nada disso ia acontecer, a dor não ficava mais leve, e sim nossas almas, nossa humanidade, às vezes caminhar faz parecer que não tocamos o chão, os remédios para dormir, para acordar e para abrir o apetite nos tira do chão, nos torna tão leves como uma folha no outono. Não sabia como avisa-lá que isso iria ocorrer, como dizer que a ilusão do perdão jamais se concretizaria, apenas aprendemos a repetir que perdoamos para não ouvirmos mais conselhos, sobre deus, sobre justiça, ou sobre qualquer outra ilusão que tentem enfiar na nossa goela. As histórias eram próximas, a perda de um filho, e logo em seguida o desmoronamento de um casamento, e a mais completa solidão.

Poucos meses após a perda de minha filha não aguentava mais olhar para minha ex mulher, ela tinha seus olhos, não mais o seu sorriso, pois como eu esse ela havia perdido também. Nos primeiros meses tentamos, mas um simples café da manhã acabava em lágrimas, pois não ouviríamos seus pezinhos correndo pela casa, apenas o pão seco incomodando a garganta. Logo se tocar não era mais uma opção. NÃO, não iremos tentar de novo. Não se cura a dor da perda de um filho gerando outro filho, esse conselhos só pode sair da boca de alguém que jamais foi pai ou mãe. Logo entre essas lembranças volto para 2010, para aquela pequena sala do centro cultural. Grupo de apoio? Como apoiar alguém, se todos ali estavam no chão, com a cara tão colada no solo que não poderiam levantar a cabeça acima de 30 cm. A maioria estava ali para satisfazer a terapeuta. Talvez poucos lugares no mundo acumulassem tanta dor por metro quadrado. A ordem não devia ser essa, filhos podem sobreviver a perda dos pais, mas um pai, ao perder um filho perde um pedaço de si mesmo. O casamento se foi, a coragem de viver, mas a apatia faz com que caminhemos em meio ao deserto. Ali, pensei pela primeira vez falar.
-Oi
-Oi
-Você vem sempre aqui?
Que porra foi essa? Como eu tento fazer uma piada com um encontro em um grupo de apoio a pais que perderam os filhos? Eu venho sempre aqui, embora nem saiba porque.
-Como?
-Desculpe. É a primeira vez que te vejo, gostaria de tentar tornar mais leve, mas sei que você está farta disso?
-Sim, todos tomam cuidado ao falar comigo. Não entendem que isso apenas piora.
Seus olhos não sustentam mais o peso das lágrimas, não há mais como segurar, e de repente o peso do oceano faz aquela pequena gota correr em sua face. Como aconselhar? Como direcionar palavras que sei que não terão o mínimo efeito. Apenas a abracei, lembro que enterrar a cabeça em ombros  era a coisa mais comum a se fazer, mas a vontade e de jamais tirar de volta. Pois no momentos que tiramos nossa cabeça desse ombro, percebemos que um abismo nos separa, e por mais que sintam muito. Jamais sentirão. Mas nesse nosso encontro foi diferente, sei que ela percebeu. Abraçar um estranho e encará-lo, ali ela viu que pela primeira vez eu poderia saber o que ela sentia.
Nas primeiras semanas buscamos evitar ao máximo compartilhar dores, mas nos primeiros meses foi inevitável, e talvez isso fizesse parte da confiança. Logo nossas conversas se guiavam sempre ao passado, a primeira palavra, o primeiro passo, a primeira graça. As fotos foram a pior parte, aquelas imagens carregadas de ausência. O choro que se seguia, o vazio que se colocava entre nós. No fundo sabíamos que após a destruição dos nossos casamentos jamais seríamos como antes, as relações sempre vão em direção a um futuro, porém ambos não estávamos querendo um futuro, pois morremos no passado. Compartilhar a dor era nosso programa preferido. Nossa relação se construiu assim, compartilhando o peso do mundo. Ignorando um futuro sem nossos filhos, não existe forma de seguir.
-Você tem certeza que isso é a melhor saída?
-Você poderia sugerir algo melhor?
-Não.
-Como você conseguiu ficar tanto tempo sem ela?
-Não consegui, apenas estava esperando esse dia chegar.
Então compramos o que necessitaríamos, choramos por toda uma tarde em meio a lembranças e fotos. Nos abraçamos por longos minutos, e naquele momento as palavras já haviam sido abandonadas. Ela tomou todos os seus comprimidos. Seu corpo está sobre a cama, e pela primeira vez desde que a conheci vejo que está em paz. Os meus comprimidos ainda estão na cama, irei tomá-los. Mas antes de tudo, queria apenas deixar isso escrito na forma de expor nossos motivos, tentamos viver. Mas morremos. Há 6 anos eu fui enterrado junto com a minha filha, ela havia morrido há um ano atrás também. Será que fui mais forte por aguentar mais tempo? Talvez não, apenas estava esperando ela para que efetuamos a passagem juntos.
Espero que os vivos jamais morram assim, morrer e continuar respirando em meio a lembranças e pior do que morrer e apagar a luz.
26/05/2012
Carta encontrada ao lado de dois corpos em um quarto de hotel.

11.27.2016

Na utopia eu era alguém

Nos últimos dias na cama pude refletir sobre os rumos recentes que minha vida tem tomado. Comecei a pensar sobre a origem da "náusea", lembro que conhecer Sartre foi apenas um detalhe teórico que marcou, Camus e Sade foram muito mais interessantes em seus diálogos com o vazio. Ainda assim a origem do fardo de Atlas era mais antiga, e percebi que o peso começou a se instalar após a saída do conforto da irrealidade, comecei a descer na medida em que me distanciava dos filmes, games e outras válvulas de escape que amenizam e distanciam do real. 

Como Charlie Fineman (Reine sobre mim, 2007), muitas vezes os jogos me tiravam daquele mundo insípido e me levava para realidades externas, que ainda evanescentes me distraiam e ajudavam a ultrapassar os longos e solitários corredores do tempo. Mas na medida que a reflexão foi tomando peso, e cadenciando os meus pensamentos, o vazio foi se instalando, e assim meras distrações surgiam com seu véu levantado, onde revelavam a instabilidade e fragilidade de fugas ilusórias. 


Diante dessa problemática colocada em cena pelo conceito, tive que aceitar que sempre me faltou o trauma que o Charlie enfrentou, e o próprio Freud, não aprovaria essa sintomática sem origem, deveria escavar mais a fundo as camadas do meu ser, e aceitar que a ruptura está submersa no inconsciente, mas esta ali, estática. Esse detalhe talvez aguarde em algum canto escuro da minha mente, mas essa porta não foi revelada ainda, e assim sigo neurastênico.

As artes plásticas vem me oferecendo algumas doses hepáticas que amenizam, mas as pequenas pilulas de arte vêm sempre acompanhada de difíceis efeitos colaterais, que colocam em cheque um tratamento feito com uma base discursiva burguesa, na qual a sociologia pode anular seus efeitos, e assim  piorar os sintomas, somando a auto-depreciação daquele enganado por retórica da elite. 


John Paul Fauves. Vodka Campbell,2016. Óleo sobre tela. 

Conheci o trabalho  de John Paul Fauves há poucos meses, embora seu trabalho tenha grande intensidade, não encontramos muito sobre o artista em ascensão, apenas matérias velozes, nas quais não importa o texto, a imagem garante o exito da matéria. Triste isso, pois perdemos uma camada interessante da obra. Mas ainda assim me arrisco a apresentar minhas impressões, que atreladas ao meu estado atual, se complementam e intensificam o efeito de tais imagens. 


Atuar bidimensionalmente com uma representação que é facilmente atrelada a produção de Andy Warhol já apresenta uma carga de grande confiança em sua mensagem, onde sem medo de se melar no clichê, o artista segue sua intenção, buscando extravasar o que já foi tão amplamente divulgado. Embora o Mickey seja uma criação de 1928, em 1964 as sopas Campbells poderiam atrair muito mais a tenção de seu público em relação a um mero desenho, mas no pós guerra, a televisão se consolidou como o aparato que possibilitaria uma imagem imaterial ser apresentada a seres humanos como nunca antes na história da humanidade. 

Os desenhos animados foram intensamente presente na vida de muitas pessoas, em grande parte por uma somatória da televisão e do tédio dos pais e cuidadores de nossa infância. Porém John Paul vai além das meras marcas pedagógicas dessa personagem, e já aponta pra sua decadência enfrentada na atualidade, onde os dispositivos móveis, as redes sociais e o instagram, oferecem uma sucessão de imagens muito mais rápida, onde as narrativas perdem lugar devido a sua velocidade de sobreposição. Assim sem a narrativa, a forma Mickey sobrevive muito mais como logo, no qual faz uma breve alusão ao personagem que já foi. Como ícone do consumo ele se mescla ainda mais com aquilo que impulsiona, e os símbolos do mercado, da luxuria e do prazer adquirem importância na composição, pervertendo o que era representava nossa infância a algo quase completamente dissolvido.

Entrei em contato com o artista da Costa Rica há semanas, falando sobre a possibilidade de escrever sobre seu trabalho, sua empolgação me lisonjeou, mas após a enpolgação a apatia se instalou como de costume. Mas pensando sobre a apresentação de sua produção, achei nada mais justo do que tratar sobre o clima atual no qual não apenas eu, mas grande parcela da juventude vem atravessando. Os ícones se pervertem e não asseguram mais um refúgio ao qual fugirmos quando a realidade pesar.

A velocidade do meme, a imposição da atualização como modo de vida, ressaltam a neurose social. Os sintomas são variados, a crise da narrativa castrou a possibilidade de uma apreensão mais densa. As imagens se fundem em suas formas e cores, os contornos não são tão claros. A forma de subjetividade simulada nos imbuia a uma empatia manifesta, agora, esvaziada perdeu-se.

Representar plasticamente essa catalepsia moderna não é tarefa fácil, pois o risco de cair no banal é intenso, Fauves alcança tal proeza. Do auge a decadência, faz um looping e chega no auge novamente, pois faz uma volta ao lugar de destaque da imagem, que na parede de um museu, galeria ou até mesmo casa de colecionador, traz a narrativa como parte destacada constitutiva da compreensão da imagem.

Retomando o título desse texto, com a falta de nossas utopias infantis, as outras já não bastam, pois  a inocência perdida não se recupera, mas ver a perda de pureza esgarçada em uma tela, relembra onde estamos, e tudo o que perdemos. Sem a possibilidade de fuga pra ilusão, nos perdemos na atualidade, e submersos, não vemos as cores do presente.

Na utopia eu era alguém, sendo o Chris Redfield de Resident Evil, Doom ou Zelda, sanava o desejo de ser na irrealidade, agora com o véu levantado, ficamos no quarto vazio.


11.21.2016

O verso da face




Cao Guimarães vive e trabalha em MG, foi indicado ao Pipa 2014 e possui em seu portfólio peças em coleções  como a Tate Modern (Reino Unido), o MoMA e o Museu Guggenheim (EUA), Inhotim (Brasil), dentre outras. Participou de Bienais e, recebeu o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Funarte em 1993. 

O tema do desgaste da imagem anda desgastado. Desde Andy Warhol essa temática vem sendo utilizada por variados artistas,  em múltiplos suportes. Compareci a uma abertura de exposição, como qualquer outra. Enquanto estudante de História da Arte, minha rotina se divide entre algumas aberturas de exposições no interesse de manter atualizado o circuito de galerias e artistas representados por estas. Minha surpresa na última semana é oriunda da exposição Retroatos de Cao Guimarães na Galeria Nara Roesler.  Um fotógrafo capturava imagens dos rostos dos visitantes, com a intenção de divulgar a abertura da exposição na internet, me senti incomodado com o fato de entre fotografias que não revelavam faces, faces sendo capturadas para exposição posterior, almejando a soma de capital simbólico alcançado pela exposição de determinados atores.


Embora o tema inicialmente não tenha me chamado atenção, pouco a pouco as imagens dispostas nas paredes começaram a me capturar. Em tempos de Black Mirror, pós verdade e instagram talvez o tema da  difusão exacerbada ainda deva ser abordado pelas artes, pois o que seria do circuito artístico atual sem a difusão em massa das imagens de trabalhos. O compartilhamento e a visualização instantânea nos guia em direção a uma apatia das faces e dos corpos de uma forma que acredito muito peculiar. Entre as 18 fotografias da exposição, nenhum rosto se revelava diretamente, porém, o mistério da face não presente capturava ainda mais a atenção de todos os presentes. 

 A inversão do rotineiro e a captura da atenção, talvez essa ironia seja o maior trunfo de Cao Guimarães. 



Me deparei com a noticia de que pesquisadores americanos estão desenvolvendo um aplicativo para ajudar a reduzir o número de pessoas que morrem tirando selfies, já que um estudo aponta que 15 pessoas morreram por causa de selfies em 2014, 39 em 2015 e 73 nos primeiros oito meses de 2016. Atingimos um ponto, no qual a simples composição e exposição de um rosto não atrai o olhar do outro, olhar que adquire uma importância cada vez maior, devido a tamanha relevância que o olhar do outro adquire na nossa compreensão de mundo. Assim vale tudo na tentativa de expor algo além do banal já presente. Nesse fluxo, Cao Guimarães não colocou em risco a vida de ninguém, mas ao expor o verso do  comum criou obras que interrogam o espectador acerca do real interesse de expor. Retroatos podem fazer uma alusão direta a retroalimentação de nossa subjetividade, que se molda partindo de uma busca desenfreada pelo fora do comum. 




Talvez haja uma grande dose de deboche nessa série, onde olhamos para o verso, indo no contrafluxo do que já havia sido constituído anteriormente. O espectador encara o retrato, mas esse dá as costas ao olhar curioso, em certa medida como uma não importância daquele que olha, que ao olhar pro outro enxerga a si mesmo.  Esse jogo criado pelo artista demonstra a confusão de nossa época, onde se busca algo com tamanho afinco, e nesta busca se extravasa os limites alcançando o seu contrário. O que inicialmente encarei como um tema já desgastado, acabou me guiando em direção à reflexão do presente. Retroatos, não é um tema já ultrapassado, e sim um tema que retorna com uma nova presença, indo muito além do desgaste evidenciado por Andy Warhol e imerso no presente nos coloca em contraposição com internalidades vergonhosas. 


Mateus Souza, Aldones Nino e Manoel Pinheiro


17/11/2016 - 21/01/2017

Cao Guimarães: Retroatos 

Curadoria: Ricardo Sardenberg

Galeria: Nara Roesler 

11.15.2016

Alojamento: Imagem e Gritos




Essa imagem me levou em direção a um processo que julgo de extrema importância pessoal. Em setembro de 2014 fui morar na residencia estudantil da UFRJ. Comecei um curso de graduação em História da Arte, embora tivesse entrado nos espaços de "arte" poucas vezes na vida. Nesse espaço vivenciei muitos processos, presenciei histórias, reconheci e me identifiquei em várias delas. Sempre me interessei pelas imagens e textos dispostos pelas paredes. Sabia da história de muitas das inscrições que via ali, porém inúmeras já haviam sido perdidas pelo tempo. Meu interesse sempre foi variado, e na vontade de realizar muitas coisas, outras sempre se perdem no caminho. Após alguns meses fora, retornei para visitar um amigo, e a frase acima me chamou muito a atenção. Sua simplicidade e disposição saltava aos olhos daqueles que caminhavam pelo imenso corredor daquele prédio. Pensei em como muitas das criações ali eram "pedidos de ajuda", embora anônimos, sei que muitos foram feitos em momentos de desespero, solidão, confusão. Essa minha ideia foi aguçada ao me deparar com essa inscrição, pois agora ela era explicita. A solidão é um problema que aflige muitas pessoas, isso não esta em questão. Mas a solidão, associada a juventude, isolamento e outras inúmeras dificuldades incrementam os pensamentos não desejados. O prédio fica localizado na ilha do Fundão, área com mais de cinco milhões de metros quadrados. Embora situada em uma das maiores cidades do Brasil, o acesso a locomoção ainda é bem complexo. Embora desde que ingressei na UFRJ muita coisa tenha mudado, incluso a criação de uma estação de BRT e de mudança de trajetos em algumas linhas de ônibus que hoje passam pelo Fundão. Porém as imagens abordadas são das mais diferentes esferas temporais, algumas estavam lá antes de eu chegar, outras eu vi sendo realizadas, outras surgiam em poucos minutos, como mágica, em menos de 15 minutos áreas eram ocupadas por alguma intervenção, e muitas seguem sendo feitas, embora atualmente aconteça um processo de desocupação do prédio. Abaixo segue algumas imagens dos corredores onde as imagens que mostrarei estão dispostas:


                                                       


Esses corredores acumulam desenhos e frases há décadas. O descaso com a infra-estrutura aumenta o impacto dos recados, pois soma uma carga ambiental na insalubridade do espaço. Enquanto habitei o alojamento, houve quatro tentativas de suicídio, um estupro, um assassinato e inúmeras brigas e surtos psicóticos. Para além desses acontecimentos a vida seguia agitada, animada e na medida do possível "feliz". Fui obrigado a combater muitas críticas, evidenciando que para além da situação predial, das desavenças e demais precariedades, pessoas vivem lá. Era complicado perceber que as pessoas externas queriam julgar, acusar, criticar, menospreza o espaço ignorando que independente de qualquer coisa PESSOAS VIVEM ALI. Esse espaço era nossa casa, minha e de muitos jovens dos mais variados lugares do país, que buscam no Rio uma oportunidade de alcançar o melhor pra si e para sua família. Era difícil ter que defender a todo momento o que mais se aproxima da sua ideia de lar. Uma dos fatos mais marcantes eram as despedidas, amigos que colocavam seus sonhos nas malas e voltavam de onde vieram, pois alegavam que "não dá mais", "a UFRJ não é pra mim", "não consigo mais". Pensando nesses amigos que se foram, das mais variadas formas, pelos mais variados motivos, meu interesse é ressaltar como esse prédio foi e é importante pra mim. 


O quarto possui a dimensão de 10 metros quadrados, onde os alunos imprimem seus gostos, singularidades e lembranças. A estudante Barbara Rossi, realizou um impressionante trabalho de pesquisa e fotografia, no qual registrou a individualidade dos estudantes partindo dos seus espaços de intimidade. Durante anos fotografou quartos com seus habitantes, possibilitando o vislumbre da intimidade cultivada diariamente personalizando o espaço de neutralidade do prédio. Suas fotografias já fizeram parte de mostras em diversas cidades do Brasil, explicitando entre muitas coisas a possibilidade de adaptação e reformulação espacial. A intimidade exposta. Para os moradores seu trabalho possui uma carga simbólica ainda mais potente, já que vimos ali traços de personalidade, marcas dos moradores, os mais próximos conseguiriam distinguir os respectivos donos, ainda que aquele não estivesse ali presente.

Geralmente os alunos são julgados pelos mais variados motivos, ser "alojado" para alguns é um termo pejorativo. Esses que julgam, esquecem que tal situação envolve milhares de questões, e habitar esse espaço além de resistência é a única saída para aqueles que não podem estar fora de lá. Quem não está, geralmente tem outras opções, porém o contrário nem sempre acontece. Há vida habita esse espaço, em meios as ruínas  se dão novos usos, em meio ao descaso de variadas gestões da universidade essa situação se agravou e imprimiu marcas profundas em muitos estudantes. 

Voltando a imagem inicial, não irei me prender ao pormenores de minha vida, esse texto não é 
autobiográfico, mas preciso apresentar um pouco da carga simbólica que habita esses corredores, não é só de concreto que se faz um prédio, e as lembranças não enunciadas são esquecidas. Me deparei com a frase:

Me ajude! Sozinho penso merda pra carai

Esse pedido me tocou, e no meio da madrugada voltei aos corredores e fiz algumas fotos, de inscrições que elencam uma série de experiências, sentimentos, lembranças, embora em muitas não reconheça sua origem,  ainda acredito que minha morada me outorga a interpreta-las de uma forma menos ingênua, da qual muitos amigos compartilham. 

Acontecem assembleias semanais, onde as decisões são tomadas e problemas discutidos. Essas reuniões muitas vezes cortam a madrugada inteira, pois além de um espaço majoritariamente politico, é um espaço de escuta, de fala e muitas vezes de grito. Conheço uma moradora que vivia em um quarto com péssimas condições, qual dividia um colchão com alguns alunos, sem pia, sem banheiro, sem espaço. Além da situação dada, o ambiente era aconchegante, evidenciando o esforço de todos aqueles estudantes de deixar o ambiente da forma mais próxima do lar que haviam deixado para trás. Alguns estudantes são acusados de uso excessivo de drogas, e em uma das assembleias presenciei uma cena da qual jamais irei esquecer.  Alunos viviam em quartos com boas condições, enquanto outros habitavam o outro extremo teno que urinar em garrafas. Uma das moradoras pediu para falar, e entre lágrimas pontuou a situação que vivia, e bradou em alto som:

- Todos acusam eu e meus amigos de usarem drogas, todos sabem onde moro, as condições do espaço, ninguém NUNCA foi me oferecer um copo de água, ninguém nunca foi perguntar como estamos fazendo pra lavar roupa, ninguém nunca foi oferecer um ombro amigo. Antes de evidenciarem que uso drogas, perguntem o motivo. Talvez eu use drogas sim, PRA AGUENTAR! pra conseguir dormir em meio as baratas e mosquitos. Todos aqui querem ajudar? Já sabem onde me encontrar. 

Não gostaria de individualizar essa fala, e sim expandi-lá. Após essa fala, a situação continuou a mesma, e poucos se prontificaram a ajudar tal grupo de alunos. Hoje todos estão bem e na força da amizade conseguiram superar a situação. Aguentando o presente em nome do futuro, ansiando mudar um passado familiar e criando outra história. Por esses e outros amigos que senti vontade de escrever, embora algumas semanas tenham passado até esse momento se efetivar.



Na imagem acima podemos ver como o caos da construção serve até mesmo como indicio do descaso e abandono.  O interior da parede se mostra, em uma espécie de ferida no cimento. A questão que me chama a atenção é se o caos de décadas deixou o cimento assim, o que ele é capaz de fazer com  os corpos e mentes daqueles que ali habitam? O jovem retratado ao lado encara o espectador, usando óculos new rave, talvez porque não possa ver claramente o motivo da comemoração em meio o caos. Os alunos comemoram não ao caos, mas a vida, já que ainda que em meio ao caos ela continua. A administração do prédio,  a instituição comemoram o caos? Também creio que não, já que o ignoram completamente.

                                    
        

Algumas imagens apresentam seres mitológicos, macabros, que talvez evidenciem um momento não tão bom na vida daquele que o criou. Desenhos desse tipo foram focos de amplos debates, onde alunos solicitavam sua exclusão, e outros evidenciavam a sua manutenção. Desenhos bonitos pra disfarçar a feiura cotidiana? Entre muitos argumentos esse tipo de desenho também resiste, embora não sejam queridos por alguns, outros justificam sua manutenção na tentativa de  evidenciar a assustadora realidade.



∆ do ♥ bizarre + "Máscara da Peste Negra" e ao centro quase como uma Marca D'água o nome Dick Dick e abaixo em azul A noite vive!

No momento vamos focar nos elementos centrais da imagem, o ∆ do ♥ bizarre e a figura humana. Essa imagem é colocada na escada, ao alcance dos olhos de todos que sobem o prédio.

O Delta é a quarta letra do alfabeto grego, eu associo a letra ao triângulo, triangulo como espaço, associado a lenda do "Triângulo das Bermudas ":
"O Triângulo das Bermudas é uma área situada no Oceano Atlântico. A região notabilizou-se como palco de diversos desaparecimentos de aviões, barcos de passeio e navios, para os quais se popularizaram explicações extrafísicas e/ou sobrenaturais. Um dos casos mais famosos é o chamado voo 19. Muito embora existam diversos eventos anteriores, os primeiros relatos mais sistemáticos começam a ocorrer entre 1945 e 1950. Alguns traçam o mistério até Colombo. Mesmo assim, os incidentes vão de 200 a não mais de 1000 nos últimos 500 anos".

O ♥ é um ideograma usado para expressar a ideia do "coração" em seu sentido metafórico, como o centro de emoção humana, ligado a ideais de carinho e amor:

"A combinação da "forma de coração" e seu uso dentro da metáfora "coração" desenvolvido no final dos Idade Média. Com possível exemplos ou antecessores diretos no início dos séculos XIII ao século XIV, o conhecido símbolo do amor que o coração representa foi desenvolvido no século XV, e tornou-se muito popular no 16º século. (Fonte: http://www.heartsymbol.com/english/index.html)"

A figura humana com máscara de bico alongado pode fazer alusão aos médicos da peste negra que nos séculos 17 e 18 usavam máscaras que pareciam bicos de aves cheias de itens aromáticos.

 "As máscaras foram concebidas para protegê-los do ar fétido, que (de acordo com a teoria miasmática da doença) foi considerado como a causa da infecção. Assim: Possuíam um nariz de meio pé de comprimento, com a forma de um bico, preenchido com perfume em apenas dois orifícios, um de cada lado, perto das narinas, mas que eram o suficiente para respirar e reunir o ar das drogas alojadas no interior do bico. (Encyclopedia of Infectious Diseases: Modern Methodologies, Editor Tibayrenc,  p. 680)"

∆ do ♥ bizarre

Diante dos fatos elencados aqui acho que fica claro a mensagem que eu compreendia cada vez que olhava esse recado. Compreendia ele como denúncia de um espaço que é palco de mistérios, e desaparecimentos, onde o sentimento se apresenta de forma bizarra. A figura ao lado alude ao ar fétido da situação, onde o prédio se torna um lugar confuso, com relações complexas que se apresentam como uma epopeia contemporânea, onde os feitos e ações memoráveis permanecem na mente de cada um dos ali presentes. 



"Color my life with the chaos of trouble"

Colorir minha vida com o caos de problemas


Quais são as cores que esses alunos levaram para a vida?

Tentar colorir a vida com um caos é o que lhes restas, cada uma dessas imagens são o caos cotidiano representado em figuras. Algumas das formas geométricas se interseccionam criando lações de afeto, ou muitas vezes preenchendo esse vazio na solidão. O cimento corroído, aros e tridentes, símbolos de bem e do mal se apresentam diante do caos com que alunos colorem sua vida. Colorir com o caos? Qual seria a intenção de colorir a vida com caos? Talvez pela falta de opções, pela disposição de elementos caóticos, com os quais se necessita ainda assim colorir.

               
      




As paredes também servem para extravasar aqueles desejos tão caros a juventude. Transar, Gozar, Trepar, Chupar, Algumas palavras que são imersas em pudor, censuradas do nosso cotidiano surgem como recados que são vistos diariamente.  Entre os dias de estudos e as necessidades diárias, surgem essas vontades. Gritar eu quero tranzar, pode parecer uma simples provocação, gratuita para alguns, porém desejos não deveriam ser encarados como provocações, a transgressão serve também para libertar o que se cala. Ir além das normas duplamente, falar nas paredes, falar o que não querem ouvir, falar o que se deseja, falar o impronunciável que no espaço cotidiano de alunos do ensino universitário, longe da família, onde muitos falam ou vivenciam sobre pela primeira vez. 






Agora estão quase todos libertos.

Quem está liberto? Eis uma questão em aberto.

Mais uma vez a degradação do prédio serve como base para a criação de um desenho, onde uma figura humana está imersa no azul, forma espirais que se expandem até o desaparecimento, provavelmente adicionaram posteriormente uma frase que busca tratar da liberdade. Ambos seriam uma afirmação sobre a realidade dos alunos. 

As espirais funcionam há seculos como simbolo do processo de crescimento e evolução, e a figura ao olhar acima, além das espirais, por processo posterior encontra a firmação da liberdade. Essas paredes adquirem uma grande carga histórica, na medida em que registram anseios, propõe questões, que dão uma coesão ao conjunto. Um aluno de 2016, pode interagir com o registro de outro que já se foi há décadas. E assim essa dinâmica de inclusão e exclusão vai se dando continuamente. Onde a liberdade e a busca são marcas intrínsecas a todos esses alunos, na tentativa de mudança. 


           
          
      



Reconheço a importância da vivência nesse espaço para as mulheres jovens, onde muitas vezes, a universidade é o primeiro espaço onde exercitam a sua liberdade, buscando prazer, aceitando seu corpo e principalmente rompendo muitas vezes um ciclo de abusos e traumas que experimentaram na vida. Uma frase bem conhecida é "Machistas não passarão", entoada toda vez que um homem busca subjulgar uma mulher utilizando seja quais forem suas premissas. Machismo dentro da casa já resultou em expulsão e muitas outras formas de exclusão. Há portas onde manifestantes anônimos escrevem "machistas moram aqui". Essas frases evidenciadas ai em cima são apenas uma amostra da emancipação feminina endossada pela ajuda mútua entre as mulheres, onde o problema de uma passa a ser problemas de todas e nessa união elas reivindicam pra si uma vida mais digna, ainda que em meio aos caos do prédio. O amor próprio muitas vezes surge através da fala do outro, e essas marcas nas paredes são apenas o pico de uma discussão muito mais profunda que se realiza no dia-a-dia da casa. 


        
      


Algumas frases evidenciam o sentimento de abandono com o qual todos convivem diariamente, ao buscar um pouco de dignidade nas coisas simples, como um vaso sanitário, um chuveiro, um fogão ou até mesmo uma pia pra lavar a mão e não encontram. Pequenos detalhes da vida cotidiana que são negados aos estudantes que se encontram nessa situação de vulnerabilidade. 


Esse desenho, embora passe despercebido pela maioria das pessoas, adquiriu uma carga muito forte pessoal, pois ele foi uma das últimas marcas deixadas por um estudante que não conseguiu se adequar. Marcou suas iniciais e o seu ano de partida 2015. Ano em que ele se rendeu ao elitismo universitário e voltou para periferia de onde tinha vindo (a mesma que a minha). Nos últimos meses esse amigo tinha algumas crises ligadas a forma como se via dentro do espaço universitário, sentia que seu "lugar não era ali", após muitos conselhos minhas palavras não foram suficientes para apaziguar sua não adequação. Um mês antes de ir embora havia uma lousa em meu quarto, na qual ele pediu pra fazer um desenho, não dei atenção, mas após sua partida compreendi como algumas marcas cotidianas são muito profundas, e até hoje mantenho a lousa com a imagem que ele deixou de si antes de partir e cortar relações com todos no Rio. Segue a imagem abaixo:



Um ser solitário diante da imensidão, onde o vento é sua única companhia. O vazio é preenchido por uma espécie de "névoa" na qual não se pode observar o que está adiante, mas é preferível o vazio ao olhar do espectador. Nem mesmo a árvore, representando seu maior interesse "a natureza" chama mais atenção, o vazio denso é o único possível. E após esse desenho ele partiu e nunca mais voltou.


                 


A felicidade e alegria são marcas recorrentes, que surgem como afirmação daquilo que é buscado com tanto afinco. Talvez essas marcas surjam como lembrete do sentimento que não pode se extinguir, daquilo que não é encontrado com facilidade, mas todos se esforçam para entre os escombros ser feliz, como a maioria das pessoas que ainda buscam algo na vida. Ser feliz, sentimento que muitos acreditam ser utópico, ainda que essa utopia seja o único lugar que querem alcançar após findar a jornada iniciada.

     

        


Um ambiente como este, carregado de imagens não poderia deixar de impulsionar questionamentos sobre a arte, sobre o poder da imagem, poder da instituição. A arte é foco das mais ávidas discussões, onde os critérios são questionados, como tudo no mundo ao redor. O caso leva a reflexão, e o fazer artístico e as classificações das manifestações se revelam como importantes focos de questionamento, onde os anônimos interrogam os silenciosos.  



       

"Alojamor", apelido dado a residência, onde muitos buscam imprimir um pouco de romantismo onde quase tudo lhes é tirado. Os anseios da juventude voltam como questionamentos materializados na parede. Não existe um interlocutor, e a questão se apresenta como um lembrete diário das questões presentes em diversas elocubrações. Na solidão da dúvida, uma saída é o grito na parede. O monólogo. Quem inventou o amor? Alguém explica? Não sei qual explicação poderia ser dada, mas a questão foi lançada.


 


Acima podemos ver o espaço onde os estudantes tomam café da manhã, observando as imagens que se impõe ao olhar. Há uma concentração maior de frases e desenhos em ambientes de maior circulação, como hall do café, escadas e início dos corredores. 





Em 2016 foi iniciado um processo de esvaziamento do prédio antigo para o novo. Onde muitos já fizeram a transição para um prédio com melhores condições de habitação, e para mim que observei essas imagens tantas vezes, a maior diferença é o higienismo dos corredores, onde não se vê mais recados, não se interroga mais o passante. Diante desse contexto o que mais me chamou atenção foi essa mudança, onde a transição entre os prédios apresentam um novo universo. A universidade está em obras, a residência ocupada e a transição iniciada. Poucos sabem o que lhes reserva o futuro, mas os questionamentos do passado evidenciados na parede serão esquecidos acredito que em poucos meses.

Comecei a escrever esse texto com a intenção de divulgar um pouco das lembranças, marcar um tempo passado e não permitir que essas imagens sejam ignoradas. A internet possibilita a veiculação. Alguma imagens ficaram de fora, como disse há pouco, a história do Dick Dick ficou de fora, não por menor importância, talvez pela delicadeza do assunto, quem sabe em outra oportunidade apresento algumas imagens que dialoguem com essa história, a morte de um aluno jamais esclarecida. 




Acima reproduzo uma imagem do novo prédio, onde a sobriedade do espaço ignora gritos passados. Onde a história antes gritada agora foi silenciada.


Não poderia esquecer de citar, que a imagem que abriu o post foi a que incentivou a iniciar tudo isso.

Sozinho eu também penso muita merda, embora eu não tenha escrito a resposta, acredito  nela. O meu exercício foi esse, escrever pra ajudar. Muitos leem, fumam, outros tocam algum instrumento, alguns até correm. Eu? escrevo!