3.23.2018

A explosão da dor

Henry Ford Hospital (The Flying Bed), 1932 by Frida Kahlo.

Nosso encontro foi curioso. Ali, naquele grupo de apoio. A primeira vez que a vi não a enxerguei, foi como olhar em um espelho, e ver apenas eu mesmo, como estava há 6 anos atrás. Eu perdi Nicole em uma noite de natal, a passagem de 2005 para 2006 foi a sensação mais estranha que eu tive pois sabia que ao contrário de todos os anos, quando esperamos coisas boas se apresentarem ao ano vindouro, eu sabia que jamais veria seu doce sorriso. Foram questões de segundos e de repente, o barulho, a virada de pescoço e a roda de sua bicicleta girou pela última vez. Por muitos meses acordava no meio da noite ouvindo o som daquele impacto, o som que silenciou sua risada, e não seria exagero estender ao silenciamento da minha em continuidade.
De repente voltei a 2010 e encarei o ódio no seu olhar, ambos tivemos nossa vida destroçada pela perda do ser que amamos mais do que a nós mesmos, e ali, naquela roda, ela buscava compartilhar sua dor no interesse do fardo se tornar mais leve. Mas nada disso ia acontecer, a dor não ficava mais leve, e sim nossas almas, nossa humanidade, às vezes caminhar faz parecer que não tocamos o chão, os remédios para dormir, para acordar e para abrir o apetite nos tira do chão, nos torna tão leves como uma folha no outono. Não sabia como avisa-lá que isso iria ocorrer, como dizer que a ilusão do perdão jamais se concretizaria, apenas aprendemos a repetir que perdoamos para não ouvirmos mais conselhos, sobre deus, sobre justiça, ou sobre qualquer outra ilusão que tentem enfiar na nossa goela. As histórias eram próximas, a perda de um filho, e logo em seguida o desmoronamento de um casamento, e a mais completa solidão.

Poucos meses após a perda de minha filha não aguentava mais olhar para minha ex mulher, ela tinha seus olhos, não mais o seu sorriso, pois como eu esse ela havia perdido também. Nos primeiros meses tentamos, mas um simples café da manhã acabava em lágrimas, pois não ouviríamos seus pezinhos correndo pela casa, apenas o pão seco incomodando a garganta. Logo se tocar não era mais uma opção. NÃO, não iremos tentar de novo. Não se cura a dor da perda de um filho gerando outro filho, esse conselhos só pode sair da boca de alguém que jamais foi pai ou mãe. Logo entre essas lembranças volto para 2010, para aquela pequena sala do centro cultural. Grupo de apoio? Como apoiar alguém, se todos ali estavam no chão, com a cara tão colada no solo que não poderiam levantar a cabeça acima de 30 cm. A maioria estava ali para satisfazer a terapeuta. Talvez poucos lugares no mundo acumulassem tanta dor por metro quadrado. A ordem não devia ser essa, filhos podem sobreviver a perda dos pais, mas um pai, ao perder um filho perde um pedaço de si mesmo. O casamento se foi, a coragem de viver, mas a apatia faz com que caminhemos em meio ao deserto. Ali, pensei pela primeira vez falar.
-Oi
-Oi
-Você vem sempre aqui?
Que porra foi essa? Como eu tento fazer uma piada com um encontro em um grupo de apoio a pais que perderam os filhos? Eu venho sempre aqui, embora nem saiba porque.
-Como?
-Desculpe. É a primeira vez que te vejo, gostaria de tentar tornar mais leve, mas sei que você está farta disso?
-Sim, todos tomam cuidado ao falar comigo. Não entendem que isso apenas piora.
Seus olhos não sustentam mais o peso das lágrimas, não há mais como segurar, e de repente o peso do oceano faz aquela pequena gota correr em sua face. Como aconselhar? Como direcionar palavras que sei que não terão o mínimo efeito. Apenas a abracei, lembro que enterrar a cabeça em ombros  era a coisa mais comum a se fazer, mas a vontade e de jamais tirar de volta. Pois no momentos que tiramos nossa cabeça desse ombro, percebemos que um abismo nos separa, e por mais que sintam muito. Jamais sentirão. Mas nesse nosso encontro foi diferente, sei que ela percebeu. Abraçar um estranho e encará-lo, ali ela viu que pela primeira vez eu poderia saber o que ela sentia.
Nas primeiras semanas buscamos evitar ao máximo compartilhar dores, mas nos primeiros meses foi inevitável, e talvez isso fizesse parte da confiança. Logo nossas conversas se guiavam sempre ao passado, a primeira palavra, o primeiro passo, a primeira graça. As fotos foram a pior parte, aquelas imagens carregadas de ausência. O choro que se seguia, o vazio que se colocava entre nós. No fundo sabíamos que após a destruição dos nossos casamentos jamais seríamos como antes, as relações sempre vão em direção a um futuro, porém ambos não estávamos querendo um futuro, pois morremos no passado. Compartilhar a dor era nosso programa preferido. Nossa relação se construiu assim, compartilhando o peso do mundo. Ignorando um futuro sem nossos filhos, não existe forma de seguir.
-Você tem certeza que isso é a melhor saída?
-Você poderia sugerir algo melhor?
-Não.
-Como você conseguiu ficar tanto tempo sem ela?
-Não consegui, apenas estava esperando esse dia chegar.
Então compramos o que necessitaríamos, choramos por toda uma tarde em meio a lembranças e fotos. Nos abraçamos por longos minutos, e naquele momento as palavras já haviam sido abandonadas. Ela tomou todos os seus comprimidos. Seu corpo está sobre a cama, e pela primeira vez desde que a conheci vejo que está em paz. Os meus comprimidos ainda estão na cama, irei tomá-los. Mas antes de tudo, queria apenas deixar isso escrito na forma de expor nossos motivos, tentamos viver. Mas morremos. Há 6 anos eu fui enterrado junto com a minha filha, ela havia morrido há um ano atrás também. Será que fui mais forte por aguentar mais tempo? Talvez não, apenas estava esperando ela para que efetuamos a passagem juntos.
Espero que os vivos jamais morram assim, morrer e continuar respirando em meio a lembranças e pior do que morrer e apagar a luz.
26/05/2012
Carta encontrada ao lado de dois corpos em um quarto de hotel.