11.27.2016

Na utopia eu era alguém

Nos últimos dias na cama pude refletir sobre os rumos recentes que minha vida tem tomado. Comecei a pensar sobre a origem da "náusea", lembro que conhecer Sartre foi apenas um detalhe teórico que marcou, Camus e Sade foram muito mais interessantes em seus diálogos com o vazio. Ainda assim a origem do fardo de Atlas era mais antiga, e percebi que o peso começou a se instalar após a saída do conforto da irrealidade, comecei a descer na medida em que me distanciava dos filmes, games e outras válvulas de escape que amenizam e distanciam do real. 

Como Charlie Fineman (Reine sobre mim, 2007), muitas vezes os jogos me tiravam daquele mundo insípido e me levava para realidades externas, que ainda evanescentes me distraiam e ajudavam a ultrapassar os longos e solitários corredores do tempo. Mas na medida que a reflexão foi tomando peso, e cadenciando os meus pensamentos, o vazio foi se instalando, e assim meras distrações surgiam com seu véu levantado, onde revelavam a instabilidade e fragilidade de fugas ilusórias. 


Diante dessa problemática colocada em cena pelo conceito, tive que aceitar que sempre me faltou o trauma que o Charlie enfrentou, e o próprio Freud, não aprovaria essa sintomática sem origem, deveria escavar mais a fundo as camadas do meu ser, e aceitar que a ruptura está submersa no inconsciente, mas esta ali, estática. Esse detalhe talvez aguarde em algum canto escuro da minha mente, mas essa porta não foi revelada ainda, e assim sigo neurastênico.

As artes plásticas vem me oferecendo algumas doses hepáticas que amenizam, mas as pequenas pilulas de arte vêm sempre acompanhada de difíceis efeitos colaterais, que colocam em cheque um tratamento feito com uma base discursiva burguesa, na qual a sociologia pode anular seus efeitos, e assim  piorar os sintomas, somando a auto-depreciação daquele enganado por retórica da elite. 


John Paul Fauves. Vodka Campbell,2016. Óleo sobre tela. 

Conheci o trabalho  de John Paul Fauves há poucos meses, embora seu trabalho tenha grande intensidade, não encontramos muito sobre o artista em ascensão, apenas matérias velozes, nas quais não importa o texto, a imagem garante o exito da matéria. Triste isso, pois perdemos uma camada interessante da obra. Mas ainda assim me arrisco a apresentar minhas impressões, que atreladas ao meu estado atual, se complementam e intensificam o efeito de tais imagens. 


Atuar bidimensionalmente com uma representação que é facilmente atrelada a produção de Andy Warhol já apresenta uma carga de grande confiança em sua mensagem, onde sem medo de se melar no clichê, o artista segue sua intenção, buscando extravasar o que já foi tão amplamente divulgado. Embora o Mickey seja uma criação de 1928, em 1964 as sopas Campbells poderiam atrair muito mais a tenção de seu público em relação a um mero desenho, mas no pós guerra, a televisão se consolidou como o aparato que possibilitaria uma imagem imaterial ser apresentada a seres humanos como nunca antes na história da humanidade. 

Os desenhos animados foram intensamente presente na vida de muitas pessoas, em grande parte por uma somatória da televisão e do tédio dos pais e cuidadores de nossa infância. Porém John Paul vai além das meras marcas pedagógicas dessa personagem, e já aponta pra sua decadência enfrentada na atualidade, onde os dispositivos móveis, as redes sociais e o instagram, oferecem uma sucessão de imagens muito mais rápida, onde as narrativas perdem lugar devido a sua velocidade de sobreposição. Assim sem a narrativa, a forma Mickey sobrevive muito mais como logo, no qual faz uma breve alusão ao personagem que já foi. Como ícone do consumo ele se mescla ainda mais com aquilo que impulsiona, e os símbolos do mercado, da luxuria e do prazer adquirem importância na composição, pervertendo o que era representava nossa infância a algo quase completamente dissolvido.

Entrei em contato com o artista da Costa Rica há semanas, falando sobre a possibilidade de escrever sobre seu trabalho, sua empolgação me lisonjeou, mas após a enpolgação a apatia se instalou como de costume. Mas pensando sobre a apresentação de sua produção, achei nada mais justo do que tratar sobre o clima atual no qual não apenas eu, mas grande parcela da juventude vem atravessando. Os ícones se pervertem e não asseguram mais um refúgio ao qual fugirmos quando a realidade pesar.

A velocidade do meme, a imposição da atualização como modo de vida, ressaltam a neurose social. Os sintomas são variados, a crise da narrativa castrou a possibilidade de uma apreensão mais densa. As imagens se fundem em suas formas e cores, os contornos não são tão claros. A forma de subjetividade simulada nos imbuia a uma empatia manifesta, agora, esvaziada perdeu-se.

Representar plasticamente essa catalepsia moderna não é tarefa fácil, pois o risco de cair no banal é intenso, Fauves alcança tal proeza. Do auge a decadência, faz um looping e chega no auge novamente, pois faz uma volta ao lugar de destaque da imagem, que na parede de um museu, galeria ou até mesmo casa de colecionador, traz a narrativa como parte destacada constitutiva da compreensão da imagem.

Retomando o título desse texto, com a falta de nossas utopias infantis, as outras já não bastam, pois  a inocência perdida não se recupera, mas ver a perda de pureza esgarçada em uma tela, relembra onde estamos, e tudo o que perdemos. Sem a possibilidade de fuga pra ilusão, nos perdemos na atualidade, e submersos, não vemos as cores do presente.

Na utopia eu era alguém, sendo o Chris Redfield de Resident Evil, Doom ou Zelda, sanava o desejo de ser na irrealidade, agora com o véu levantado, ficamos no quarto vazio.