|
Rodrigues J. C. O Corpo na História.
Editora Fiocruz, 1999. |
Essa resenha pretende tratar do livro: Corpo na História (1999), de José Carlos Rodrigues, porém, nos deteremos especificamente no capítulo dois e três do livro. Capítulos esses que tratam especificamente da questão da representação do corpo na idade média, assim apresentando o homem da idade média e seu entendimento do corpo e do cosmos. Ressaltando a ligação entre micro e macro cosmos. Problematizando a temática dos pares: Fusão/Separação e Corpo/Matéria. O autor já desenvolve há alguns anos pesquisas sobre as representações do corpo e da morte através da história. José Carlos Souza Rodrigues é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense UFF (1970) e doutorado em Antropologia pela Université Paris 7 (1981). Atualmente é professor titular de antropologia da UFF e professor associado da PUC-RIO. Publicou:
Tabu do Corpo (1979);
Tabu da Morte (1983);
Antropologia e Comunicação (1989);
Ensaios em Antropologia do Poder (1992);
Higiene e Ilusão (1995);
O Corpo na História (1999) e
Comunicação e significado (2006).
Antes de começarmos nosso entendimento, temos que deixar claro algumas divisões historiograficas. A Idade Média é um período da história da Europa entre os séculos V e XV. Inicia-se com a Queda do Império Romano do Ocidente e termina durante a transição para a Idade Moderna. A Idade Média é o período intermédio da divisão clássica da História ocidental em três períodos: a Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna, sendo frequentemente dividido em Alta e Baixa Idade Média.
A data consensual para o início da Idade Média é 476, definida pela primeira vez por Bruni, e que representa o ano em que é deposto o último imperador romano do Ocidente. No contexto europeu, considera-se normalmente o fim da Idade Média no ano 1500, embora não haja um consenso universal alargado sobre a data. Dependendo do contexto, podem ser considerados como eventos de transição a primeira viagem de Cristóvão Colombo às Américas em 1492, a conquista de Constantinopla pelos Turcos em 1453, ou a Reforma Protestante em 1517. Por outro lado, os historiadores ingleses normalmente referem-se à batalha de Bosworth em 1485 como referência para o fim do período. Na Espanha, é comum o recurso ao ano de 1516, aquando a morte do rei Fernando II de Aragão, ou o ano da morte da rainha Isabel I de Castela em 1504, ou ainda a conquista de Granada em 1492. Temos como marcas de tais períodos:
Alta Idade Média
Continuidade dos processos de despovoamento;
Disseminação do Cristianismo;
Império Bizantino sobrevive e torna-se uma grande potência;
Um surto de edificação de novos espaços monásticos;
Baixa Idade Média
Um crescimento demográfico muito acentuado e um renascimento do comércio;
Inovações de técnicas e agrícolas;
Iniciam e consolidam-se o senhorialismo e o feudalismo;
As Cruzadas;
Vida cultural foi dominada pela escolástica, uma filosofia que procurou unir a fé à razão;
Fundação das primeiras universidades;
Peste Negra;
Pintura de Giotto;
Poesia de Dante e Chaucer;
Viagens de Marco Pólo;
Edificação das imponentes catedrais góticas. [Wikipédia]
Então com esses pressupostos do que seria então a idade média podemos seguir, porém esse resumo visa ressaltar à importância da consciência de que um período que abarca mais de mil anos, e foi foco de tamanhas modificações sociais não pode jamais ser esgotado por um estudo único. Então fica claro a primeira conclusão de que todo discurso que fale sobre algum aspecto social da idade média será um recorte geográfico e temporal preciso.
No segundo capítulo do livro logo de inicio nos é apresentado a premissa primordial para se pensar a idade média e as relações do homem em tal período, seria a cosmovisão do homem de tal época, onde ele agiria de acordo com uma ótica de “integridade absoluta do universo” (p.41). O individuo seria a expressão do todo, no particular podemos encontrar o universal, mas sem dicotomia, tudo é um amálgama.
|
O Beijo de Judas, na Capella degli Scovegni. |
A terra era vista como um ser vivo, habitado por uma hierarquia de espíritos, tudo era dotado de propriedades mágicas. O individuo espelha o mundo em miniatura. Devido a isso há sistemas elaboradíssimos de saber, onde tudo se relaciona e complementa. A quiromancia, alquimia e processos divinatórios são chaves de entendimento para um mundo tão vasto e complexo. Isso já diferencia da nossa forma racional e mecanicista de pensar. Somos humanos constituídos por um saber diferente, nosso olhar jamais se aproximaria de tais humanos que viveram a tantos séculos atrás.
Todo o entendimento era embebido por uma simbologia muito forte, havia uma sensibilidade acerca do mundo habitado. Até mesmo a coabitação de animais e humanos fazia parte dessa organização, e não se devia como muitos pensam à condições econômicas desfavoráveis. “O medieval só conhecia um modo para modificar as coisas: o milagre” (p. 44). Tudo então era possível, a ordem das coisas podem ser quebradas a qualquer momento. A crença mais elevada que podemos encontrar em alguém hoje era a crença comum do povo, a manipulação dos elementos certos podem alterar tudo. O poder de cura do rei, crescimento da astrologia, adoração a subentidades denominadas santos, que podiam alterar o curso dos eventos e até mesmo provocar pequenos desvios na vontade divina.
“Os carrascos eram incessantemente procurados como fornecedores de poções miraculosas, derivadas da gordura dos executados. [...] peixes introduzidos na vagina -e ai mantidos até que morressem -, posteriormente temperados e cozidos, eram oferecidos ao amante, junto com toda a força afrodisíaca e geradora que amealharam.” (p. 45-46)
|
Niccolò e Matteo Polo entregando uma carta de
Kublai Khan para o papa Gregório X em 1271. |
Havia uma proximidade entre o terreno e o espiritual como na época do velho testamento, onde Deus falava diretamente com alguns escolhidos, e as devidas ações terrenas tem ecos celestiais e vice-e-versa. Esse sujeito começa a mudar à partir do século XVI e XVII, onde a crença no mundo mágico começa a dar lugar ao mundo desencantado regido por leis físicas, porém esse processo foi lento, salvo detalhe que ainda hoje podemos encontrar pessoas com tais crenças, embora sejam cada vez mais escassas. Alocado no processo histórico há momentos de maior ou menor crença, há focos, não seguindo uma linha retilínea de mudança da racionalidade. Geralmente o desencantamento ia apagando as crenças antigas com uma racionalidade progressista cada vez mais ferrenha, devido a isso os grandes embates que podemos reconstituir na história do pensamento.
O sonho tem grande influencia na realidade do homem medieval, há uma enorme gama de livros sobre a importância dos sonhos na sociedade medieval, assim efetuando grande importância no estrato social da época. Guerras eram feitas com base nas interpretações de sábios. O sonho “SEMPRE” tinha algo a dizer, caberia ao homem desvendar a mensagem. Tudo isso muito antes de Jung. (Rsrs)
|
Ilustração da Peste na Bíblia de Togemburgo (1411). |
A aparência continha tudo, não era necessário opor ela a algo mais oculto. Da mesma forma que a crença na aparência não era negada por um essencialismo. A solidão por sua vez era vista com receio, os eremitas eram personagens fortes para a época, mas havia uma dicotomia entre os critérios de verdade do mundo, dois caminhos para alcança-lo, afastar-se do mundo para observar alguma verdade sobre ele como no caso os eremitas, ou misturar-se com ele. Ser envolvido por tudo que compõe as camadas mais distintas da sociedade. Embriagar-se, perder-se em meio a sobreposição de elementos. Esse segundo caminho era o mais adotado, pois ia de encontro com as premissas que constituíam o sujeito social.
Todos esses fatores colaboram para reafirmar o pensamento vigente, devido a isso não era possível um maior florescimento da racionalidade objetivista, como nos é dito no trecho a seguir:
“[...] a objetividade cientifica de certo modo, era incogitável nessa cultura, tendo em vista que nem se admitia que o objeto fitado tivesse qualidades passivas [...], nem muito menos, se supunha o valor absoluto de um olhar que se pretendesse despojado de tendencias subjetivistas.” (p.51)
O clero detinha grande poder, sua aura mágica era imensa. Dentro da hierarquia existente eles estavam no topo, eram detentores de grande poder manipulatório de forças divinas. Até mesmo a distancia dos mosteiros era encarada como um castigo necessário para a purificação dos monges. O distanciamento era ligado à punição onde o exílio acaba e ele é então fundido novamente à comunidade.
|
Catedral de Notre-Dame de Paris, uma das catedrais
góticas mais famosas do mundo. |
No capítulo três a temática é a fusão entre espirito e matéria, seguindo a continuidade daquilo que já foi dito era comum a não separação entre o material e imaterial. A concepção dualista cartesiana só surge no fim da baixa idade média, assim sendo um dos fatores fundamentais para a objetividade cientifica nascente. Essa fusão é reinante até então, o debate acerca da materialidade humana é difundido em grande escala apenas no fim do XVII com ápice no XVIII com os materialistas franceses. Claro que sempre podemos localizar casos isolados de que buscavam distanciar espirito e matéria anteriormente, mas isso só ocorreu de forma diversificada com a modificação da mentalidade, a transição do homem medieval para o moderno. O corpo medieval não era um simples continente da alma, era um lugar onde se consolidava a condição humana.
Vivemos em um mundo onde não a espaço para a dor, qualquer sofrimento é sanado por algum remédio moderno, buscamos aplacar a dor, sempre fugindo dela e em busca de prazer. Mas isso é algo contemporâneo. Não havia antidepressivos, analgésicos e anestésicos em profusão como há no mundo contemporâneo. A relação com a tortura é revelada ai, já que havia um mundo de sofrimentos para aguardar o pecador após a morte, então a tortura seria apenas um adiantamento de dores futuras. Nos é dito no trecho a seguir:
“No caso da mentalidade medieval, era possível justificá-la como uma ação sobre o espírito, por meio daquilo que chamaríamos de corpo: todos os sofrimentos impingidos ao corpo eram sofrimentos estabelecidos sobre a alma e vice-versa. [...] Ela anteciparia, nesta vida, o pagamento de uma divida, potencialmente reservado para a outra.” (p.57)
Essa concepção de não separação de corpo e matéria influenciava a relação após a morte, não sendo assim considerado meros cadáveres. Abrir um corpo era bulir no espírito, desrespeito. A dissecção era um tabu, impedindo em grande parte o avanço do conhecimento da medicina, havendo ainda assim uma grande imposição de rituais para acompanhamento da prática.
|
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, mostra uma autópsia. |
O dualismo cartesiano surge então para efetivar a separação entre espírito e matéria, assim sendo seguiram caminhos distintos. A lógica mecanicista começa pouco a pouco a se impor nas concepções sobre a matéria corporal “o corpo é desencantado” (p.59). A dor começaria a ser reduzida ao neurológico. O corpo na cosmovisão medieval não poderia nem teria como ser objetificado, contrário a visão de pejorativa de putrefação pós medieval.
Na época medieval “a concepção predominante de morte era a de que esta é um ato de vida, um sono” (p.62), tudo se fundia e se interpenetrava. Não há registros de tal época que apontem algum tipo de incômodo com a falta de separação entre corpos e cadáveres. O autor nos fala:
“[...] aquilo que chamamos hoje de ‘lixo’ não constituía coisa a ser banida, expulsa ou jogada fora. O lixo era jogado ali mesmo ou nas imediações. Daí o aspecto de amontoamento das cidades medievais.” (p.62-63)
O corpo na história se revela então um livro essencial para aquele leitor que busca se aprofundar no entendimento da idade média, já que apresenta alguns traços que são presentes mesmo com a extensão milenar do período. A integralidade do ente, e a não separação de espírito e matéria moldam toda a intelecção do mundo do homem medieval. Toda a arte do período então só pode ser compreendida pela ótica da cosmovisão medieval, entre a Arte desses dez séculos podemos destacar:
Arte bizantina
Arte islâmica
Arte dos povos germânicos
Arte merovíngia
Arte carolíngia
Arte otoniana
Arte românica
Arte gótica
Arte manuelina
Bibliografia:
Rodrigues J. C. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.