5.27.2015

A Sociedade Pós-orgiástica e o Aprisionamento do Eu

Sorrowing Old Man.  Vincent van Gogh, 1890.
Filosofia, História da Arte, Literatura. Talvez todas sejam apenas um penhasco, sobre o qual eu encaro a profundidade da existência, sem coragem de me jogar, sem ânimo para ir em outra direção. Essa imensidão apresentada é sentida na carne. O passado apresenta alguns atos, mas a ação do presente se esvai. Entre tantas teorias a prática perdeu utilidade. Todo o niilismo se presentifica novamente.  
Há uma gama de estudos das mais diversas áreas que repensam e problematizam a nossa vivência contemporânea, não oferecem uma real saída, o diagnóstico está confirmado. A ascenção do racionalismo que trouxe a primazia da razão, em nada nos ajudou na real fruição da existência.
Conheço as mais variadas teorias, li inúmeros autores, mas no fim o sujeito sempre está só. A prática da real vivência no mundo é solitária. As sociedades modernas encaram um poço. O problema não é teórico, está dado, presentificado, basta o mais simples exame que todos conseguem enxergar. A sociedade pós-industrial encontrou um muro, o progresso segue (pula, destrói, constrói), mas a sociedade enquanto conjunto de seres fica estagnada.
O pequeno intervalo que temos de imersão na temporalidade é gasto na busca de prazeres fortuitos. As lágrimas podem chegar nas mais improváveis horas do dia. O sucesso suga a nossa energia vital. A produtividade seja ela nos mais diversos âmbitos nos mata. A busca... sempre a busca. Não quero falar de Schopenhauer, não quero levar esse escrito na direção de um referencial teórico.
Busca-se ligações afetivas desinteressadas, algo que fuja do vazio e ofereça vivacidade em meio ao concreto frio. A existência se resume a luzes acesas na madrugada, onde aqueles que alcançaram o tão almejado sucesso choram. O sucesso pode ser alcançado, mas sem um direcionamento do que fazer com tal objetivo este é um ganho nulo.
Summer Interior. Edward Hopper, 1909.
A lógica produtivista cegou o homem. Entretenimento alienado se confunde com todo o resto. A única saída é……… Não ofereceria uma saída, por não me julgar capaz, e também não acredito que alguém o seja. Há diversas teorias que ocuparam lugar de destaque na história do pensamento humano, há tantos séculos nada respondeu, e a busca ainda continua. A teorização que se apresenta aos homens do século XXI em nada amenizou a existência daqueles homens do século precedente, então qual motivo de nos apegarmos a elas ainda hoje?
O homem se perdeu com sua capacidade de racionalizar. A razão não foi capaz de oferecer uma resposta final. O problema pode estar em se colocar essa questão, a razão impulsionou muitos homens na busca de sentido, na logicidade da vida. A razão é o que nos possibilita postular tal questão. Essa questão sem resposta -ao menos pelo viés da racionalidade- nos direciona em busca de algo que talvez não exista. O razão é responsável por postular uma questão que nem ela sabe responder. Todas as respostas finais oferecidas nos coloca no âmbito da crença. De que adianta uma razão que só serve para nos direcionar à uma questão que mais causa desconforto do que conforto.
Abrir mão dos cânones do conhecimento cientifico é uma tarefa que talvez não caiba na esfera social, já que está é totalmente organizada de acordo com a racionalidade. O sujeito particular é controlado por essa organização já imposta desde seu nascimento. Somos impelidos a uma ordem que não acordamos, e caso o enfrentamento seja colocado como uma saída possível, ele seria calado pelas forças da ordem exterior.
Menina Triste. Morteza Katouzian, 1986.
Preso! Esse o sentimento do sujeito. Sua situação dada, e sua racionalidade construída visam trancar o homem, desta forma o social e o racional o trancafiam. Corpos dissidentes por sua vez são suprimidos, já que a incitação a quebra de regulamentos ameaçam a ordem. Somos construídos com base em uma razão vertical, e só pensamos sobre a razão com as categorias dela mesma. Mais uma vez afirmo não querer cair na teoria, Kant e os juízos sintéticos à priori não bastam.
Em meio a esse turbilhão de obrigações, legislações, deveres, metas e costumes o homem continua vivendo. Cabe então a esse sujeito lançado em meio à uma ordem já imposta se arrastar por meio da escala temporal e espacial. Assim nos sujeitamos a empregos que não queremos, vidas que não gostamos. A vida nos leva. A vida nos leva. A vida nos leva? Somos levados, seja por famílias, empregos e diversos outros fatores externos que não nós mesmos.
A total perda de sentido nos levou a isso, lúcidos, porém tristes. Dividimos o átomo, mas as dores são indivisíveis. Muitos isolados em seu mundo particular conversam de verdade apenas consigo mesmo, já que dividir dores e pensamentos é uma tarefa difícil. O outro é uma mascara disforme, e ao apresentar uma forma logo se desfaz e descobrimos que nada sabíamos.
Isolado, solitário e empurrado nos encontramos aqui. Talvez a internet seja a personificação do isolamento. A conexão não é real, desligamos a tela, abaixamos o volume, mudamos de páginas. Relações de um clique. A máquina é mais fácil de lidar, mais previsível e controlada. Lidar com o virtual é mais simples. O vazio se torna mais suportável. Preenchemos o tempo que nos resta na tarefa de encontrar no frio de uma máquina algo que nos aqueça.
Ao desligar o monitor só silencio, voltamos as paredes frias, apagamos a luz e caminhamos mais um dia em direção a vida que não nos foi escolhida. Lançados em situações impares temos a ilusão de criar nossa história. Pensar sobre essa questão é complicado, já que a auto-reflexão machuca. Encontramos na nossa história várias histórias, mas os autores são externos na maioria das vezes, direta ou indiretamente.
Stormy Weather. Jan Saudek, 1985.
A fase da sociedade orgiástica já se foi, hoje estamos nos lençóis mal arrumados deixados por ela onde o entusiasmo se esgotou. Nas festas muitos bebem para aguentar os olhares, rostos e piadas. O torpor do álcool torna a tarefa menos árdua. Esquecimento... saímos na noite em busca de esquecimento do cotidiano, fuga através de uma situação impar. Todos se entregam a essa atividade, mas ao retornar pro quarto o espelho grita sempre a mesma coisa, a mesma mensagem. Ao encarar-se só se enxerga o outro, e o outro na medida em que se olha me vê, assim formamos um grupo, onde estou no outro e não em mim. E o outro não está nele, pois se vê em mim. E assim ninguém está realmente aqui.  Somos uma sociedade espectral.

5.25.2015

O Inferno de Rauschenberg


Robert Rauschenberg ( 1925 - 2008)
O Centro Cultural Correios, apresenta de 13 de maio até 12 de julho a expsoição  “Robert Rauschenberg - O Inferno de Dante”. Com curadoria de Claudia Lopes e Simone Ajzental. A exposição nos apresenta 34 litogravuras do artista texano Robert Rauschenberg que foram produzidas com base nos 34 cantos (poemas) que compõem a primeira parte do livro “A Divina Comédia”, do escritor italiano Dante Aligheri, intitulada “O Inferno”.
O Inferno é essencialmente a alegoria de inferno existente na Idade Média, assim sendo os  mais variados pintores criaram ilustrações sobre esta obra, se destacando Botticelli, Gustave Doré e Dalí.
Robert Rauschenberg foi um pintor americano e artista gráfico cujas obras precoce antecipou o pop art movimento. Teve grande influência nas artes visuais, já que seu nome é atrelado a vários momentos importantes para a arte da segunda metade do século XX. Entre os pontos importantes de sua carreira podemos destacar:

  • Diagnosticado com Dislexia.
  • Aos 16 anos, Rauschenberg foi admitido na Universidade do Texas , onde ele começou a estudar farmácia.
  • Posteriormente, estudou no Kansas City Art Institute e da Académie Julian, em Paris.
  • Josef Albers , um dos fundadores da Bauhaus , tornou-se instrutor de pintura de Rauschenberg no Black Mountain.
  • Rauschenberg casou com Susan Weil em 1950. Seu único filho, Christopher, nasceu 16 de julho de 1951. Eles se divorciaram em 1953. De acordo com compositor Morton Feldman , após o fim de seu casamento, Rauschenberg tinha  relacionamentos romântico com colegas artistas como Cy Twombly e Jasper Johns . Segundo boatos esses relacionamentos começaram ainda em sua época de casado.
  • A abordagem de Rauschenberg foi chamado às vezes " Neo dadaísta ", um rótulo que ele dividia com o pintor Jasper Johns.
  • Rauschenberg e Johns são frequentemente citados como precursores importantes do americano Pop Art .
  • Em 1966, Billy Klüver e Rauschenberg lançou oficialmente Experimentos em Arte e Tecnologia (EAT), uma organização sem fins lucrativos criada para promover colaborações entre artistas e engenheiros.
  • Em 1969, a NASA convidou Rauschenberg para testemunhar o lançamento da Apollo 11 .
  • Fez capas para Life e Tropic, importantes revistas americanas.
  • Em 1983, ele ganhou um Grammy pela capa de Talking Head's álbum de Speaking in Tongues.
  • Em 1986 Rauschenberg foi encomendado pela BMW para sexta edição do famoso BMW Art Car Project.
  • Rauschenberg teve sua primeira retrospectiva da carreira, organizada pelo Museu Judaico , Nova York, em 1963, e em 1964 ele foi o primeiro artista americano a vencer o Grande Premio na Bienal de Veneza.
  • Em 1990, Rauschenberg criou a Fundação Robert Rauschenberg (RRF) para promover a conscientização das causas que ele se preocupava, como a paz mundial, o meio ambiente e questões humanitárias.
  • Em 2010 Studio Painting (1960-1961 ), originalmente estimados entre $ 6 e $ 9 milhões dólares, foi comprado a partir da coleção de Michael Crichton por US $ 11 milhões na Christie's, Nova Iorque.
  • No início de 1970, Rauschenberg sem sucesso pressionou o Congresso dos EUA a aprovar uma lei que iria compensar os artistas quando seu trabalho é revendido.
  • O artista mais tarde apoiou um projeto de lei estadual da Califórnia que se tornou lei, a Califórnia revenda Royalty Act de 1976.  Rauschenberg assumiu sua luta após o barão táxi Robert Scull vender parte de sua coleção de arte em um leilão de 1973, incluindo uma pintura que ele tinha originalmente vendidos para Scull por $ 900 dólares, mas trouxe $ 85.000 dólares em um leilão na Sotheby Parke Bernet, New York.
 

Jasper Johns talvez tenha sido um dos mais importantes entre
os pioneiros da pop art nos Estados Unidos.
Esses são apenas alguns motivos para prestigiarmos a exposição de tal artista em nossa cidade. A exposição é ambientada ao som de John Cage ( 1912  —  1992) que foi um compositor, teórico musical e admirado anarquista e artista dos Estados Unidos. Cage foi um pioneiro da música aleatória, da música eletroacústica, e do uso de instrumentos não convencionais, bem como do uso não convencional de instrumentos convencionais, sendo considerado uma das figuras chave nas vanguardas artísticas do pós-guerra.
O espaço ainda nos apresenta enigmáticos sacos/esculturas, onde é possível vislumbrar os “fardos” do peso da jornada. Isso nos oferece uma reflexão sobre o fardo e peso do pecado na nossa mentalidade cristã. O inferno encarado de frente pelas representações de  Rauschenberg nos direciona ao questionamento da tradição e da punição cristã.  Literatura, Música, Litogravura se cruzam em direção a uma imersão na busca de Beatriz.
Vale ainda lembrar o episódio narrado a seguir:
Robert Rauschenberg's "Canto XIV," 1959.
Robert Rauschenberg, em Spring Training (1965), alugou trinta tartarugas para soltá-las sobre um palco escuro, com lanternas presas nos cascos. Enquanto as tartarugas emitiam luzes em direções aleatórias, o artista perambulava entre elas vestindo calças de jóquei. No final, sobre pernas-de-pau, Rauschenberg jogou água em um balde de gelo seco preso a sua cintura, levantando nuvens de vapor ao seu redor. Ao terminar o happening, o artista afirmou: "As tartarugas foram verdadeiras artistas, não foi?".
Essa espécie de “”retrospectiva” visa apenas ressaltar a importância do artista, discorrendo sobre suas contribuições às artes visuais. Para terminar esta série o artista se isolou em uma ilha no outono de 1960. Em dezembro do mesmo ano a série foi exposta na Leo Castelli Gallery, em Nova York. Três anos depois é adquirida pelo Museum of Modern Art - MoMA, de Nova York, com recursos de um colecionador não identificado. Durante a segunda metade dos anos 60 ela circula por numerosos museus dos Estados Unidos e Europa.


Exposição: “Robert Rauschenberg - O Inferno de Dante”
Abertura: 13 de maio, às 12h
Visitação: de 14 de maio a 12 de julho de 2015
De terça-feira a domingo, das 12h às 19h – Grátis/Livre (acesso para pessoas com deficiência)
Local: Centro Cultural Correios - Rua Visconde de Itaboraí, 20 - Centro - Rio de Janeiro|RJ
Telefone: (21)2253-1580 (Recepção)
Curadoria: Claudia Lopes e Simone Ajzental. 
Patrocínio: Correios


PS: Segue as outras representações clássicas do inferno.

Sandro Botticelli - La Carte de l'Enfer.
Gustave Doré's, Divine Comedy (1861–1868);
 Dante perdido, Canto 1 do Inferno. 
 Salvador Dali, Hell, Canto 34.

5.24.2015

Brasil e Europa: Fotografia e Percepção

Museu de Arte do Rio
Museu de Arte do Rio (MAR) é um museu do Rio de Janeiro, inaugurado em 1 de março de 2013. Localizado no Centro do Rio de Janeiro, próximo a principal avenida do bairro, o museu ocupa dois edifícios na praça Mauá, entre o Centro e a Zona Portuária. Um dos prédios é o Palacete Dom João VI, construído em estilo eclético. Foi dedicado às salas de exposição, o "Pavilhão de Exposições", aproveitando-se o pé-direito alto e a estrutura livre de seus salões. O outro, adjacente ao palácio, era utilizado pelo terminal rodoviário Mariano Procópio antes de ser integrado ao museu, a "Escola do Olhar", além de abrigar a administração e outros departamentos.
Os dois prédios somados, ligados por uma passarela suspensa, a "cobertura fluída", ocupam uma área total de 2.300 metros quadrados e uma área construída de 11.240 m².
O museu foi premiado com o título de melhor construção de 2013, ano da sua inauguração, na categoria museu, pelo voto popular do maior prêmio internacional de arquitetura do mundo, o Architizer A+ Awards. O MAR concorreu com os museus Heydar Aliyev Center (Azerbaijão), New Rijksmuseum (Holanda), Zhujiajiao Museum of Humanities & Arts (China) e com o Danish Maritime Museum (Dinamarca). [Wikipédia]
Atualmente o museu apresenta duas exposições  que fazem parte das comemorações do Aniversário de 450 anos da Cidade do Rio de Janeiro:
  • Kurt Klagsbrunn, um fotógrafo humanista no Rio (1940-1960);
  • Rio – Uma paixão francesa.
Ambas de » 14/04/2015 a 09/08/2015.

Dama acompanhando a corrida no Jockey Clube.
Rio de Janeiro, 1945
Kurt Klagsbrunn foi um austríaco que teve que fugir da ascensão do totalitarismo na Alemanha Nazista. Chegando ao Brasil sem profissão encontrou na câmera a sua vocação. Tornando-se assim um dos maiores fotógrafos da primeira metade do século XX. Registrando a vida no Rio, foi capaz de revelar aspectos da vida carioca que só a total entrega seria capaz de revelar. Teve várias fotos publicadas na importante revista americana LIFE.  
Os curadores são: Marta Klagsbrunn, Márcia Mello, Paulo Herkenhoff, Susane Worcman, sendo coordenados por Victor Hugo Klagsbrunn, sendo este sobrinho do fotográfo. A coleção de TODAS as fotos foram doadas ao MAR, desta forma ele se consolida como a primeira coleção de imagens de Klagsbrunn .
Teve grande envolvimento com a União Nacional dos Estudantes (UNE), foi fotógrafo do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e registrou Luiz Carlos Prestes recém saído da prisão. Todo esse processo histórico sendo registrado pelas suas lentes.
Engraxate na Cinelândia, com o extinto Palácio Monroe ao fundo
Gostaria de destacar a sessão Antropologia da Vida Cotidiana no Rio, onde ele registrava as condições do desenvolvimento urbanístico e social do país, já que vindo de uma pais de capitalismo avançado tinha grande interesse pela evolução da tecnologia dos meios de produção do Estado do Rio de Janeiro.  Assim além de jornalista, artista, ativista ele acumula mais o título de historiador visual.
Rio, uma paixão francesa, revela um Rio, mas sua paisagem é o Rio captado por lentes onde seus particulares pontos de vistas são provenientes dos acervos das mais respeitadas instituições francesas – Centre Georges Pompidou, Maison Européenne de la Photographie (MPE), Société Française de la Photographie e Musée Nièpce . Sendo assim diversos os enfoques das câmeras, que apresentam 75 fotos, de diversos artistas.
Vincent Rosenblatt, 41, vive no Brasil há 12 anos
 e e registrou mais de 400 bailes.
As duas exposições encontram-se frente a frente no 1º pavilhão de exposições do MAR. Vale a pena da uma conferida em ambas, já que podem direcionar o expectador para uma reflexão sobre a paisagem da cidade do Rio. Sendo as transformações e a grande efervescência cultural, consideradas marcas daquela que ainda é considerada por muitos a Capital do país.

Fotografia da série “Surfistas de trem”, de Rogério Reis.
Há então uma boa oportunidade para todos aqueles que estão interessados em fotografia e na História do Rio de Janeiro. Ambas exposições estão com um belo projeto curatorial, embora a do Kurt esteja alguns passos à frente. Conseguiram possibilitar uma total imersão no trabalho e na vida do fotógrafo, cruzando com isso o registro muitas vezes leve do artista.
Começando com o escuro da sua fuga para o Brasil e concluindo com o belo par de fotografias do Poder, onde capta a proximidade das manifestações dos  anos pré JK, contrapondo com a distancia forçada da "Nova Capital do País", onde isolada o povo não ambiciona alcança-la. 

Links:
Mar: http://www.museudeartedorio.org.br/

PS: para quem ficou curioso, segue fotos daqueles museus que perderam o título para o projeto arquitetônico do MAR. 



Zhujiajiao Museum of Humanities & Arts (China)

Heydar Aliyev Center (Azerbaijão)
New Rijksmuseum (Holanda)
Danish Maritime Museum (Dinamarca)


5.18.2015

Idade(s) Média: Fusão e Matéria

Rodrigues J. C. O Corpo na História. Editora Fiocruz, 1999.
Essa resenha pretende tratar do livro: Corpo na História (1999), de José Carlos Rodrigues, porém, nos deteremos especificamente no capítulo dois e três do livro. Capítulos esses que tratam especificamente da questão da representação do corpo na idade média, assim apresentando o homem da idade média e seu entendimento do corpo e do cosmos. Ressaltando a ligação entre micro e macro cosmos. Problematizando a temática dos pares: Fusão/Separação e Corpo/Matéria. O autor já desenvolve há alguns anos pesquisas sobre as representações do corpo e da morte através da história. José Carlos Souza Rodrigues é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense UFF (1970) e doutorado em Antropologia pela Université Paris 7 (1981). Atualmente é professor titular de antropologia da UFF e professor associado da PUC-RIO. Publicou:
  • Tabu do Corpo (1979);
  • Tabu da Morte (1983);
  • Antropologia e Comunicação (1989);
  • Ensaios em Antropologia do Poder (1992);
  • Higiene e Ilusão (1995);
  • O Corpo na História (1999) e
  • Comunicação e significado (2006).

Antes de começarmos nosso entendimento, temos que deixar claro algumas divisões historiograficas. A Idade Média é um período da história da Europa entre os séculos V e XV. Inicia-se com a Queda do Império Romano do Ocidente e termina durante a transição para a Idade Moderna. A Idade Média é o período intermédio da divisão clássica da História ocidental em três períodos: a Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna, sendo frequentemente dividido em Alta e Baixa Idade Média.

A data consensual para o início da Idade Média é 476, definida pela primeira vez por Bruni, e que representa o ano em que é deposto o último imperador romano do Ocidente. No contexto europeu, considera-se normalmente o fim da Idade Média no ano 1500, embora não haja um consenso universal alargado sobre a data. Dependendo do contexto, podem ser considerados como eventos de transição a primeira viagem de Cristóvão Colombo às Américas em 1492, a conquista de Constantinopla pelos Turcos em 1453, ou a Reforma Protestante em 1517. Por outro lado, os historiadores ingleses normalmente referem-se à batalha de Bosworth em 1485 como referência para o fim do período. Na Espanha, é comum o recurso ao ano de 1516, aquando a morte do rei Fernando II de Aragão, ou o ano da morte da rainha Isabel I de Castela em 1504, ou ainda a conquista de Granada em 1492. Temos como marcas de tais períodos:
Alta Idade Média
  • Continuidade dos processos de despovoamento;
  • Disseminação do Cristianismo;
  • Império Bizantino sobrevive e torna-se uma grande potência;
  • Um surto de edificação de novos espaços monásticos;
Baixa Idade Média
  • Um crescimento demográfico muito acentuado e um renascimento do comércio;
  • Inovações de técnicas e agrícolas;
  • Iniciam e consolidam-se o senhorialismo e o feudalismo;
  • As Cruzadas;
  • Vida cultural foi dominada pela escolástica, uma filosofia que procurou unir a fé à razão;
  • Fundação das primeiras universidades;
  • Peste Negra;
  • Pintura de Giotto;
  • Poesia de Dante e Chaucer;
  • Viagens de Marco Pólo;
  • Edificação das imponentes catedrais góticas. [Wikipédia]
Então com esses pressupostos do que seria então a idade média podemos seguir, porém  esse resumo visa ressaltar à importância da consciência de que um período que abarca mais de mil anos, e foi foco de tamanhas modificações sociais não pode jamais ser esgotado por um estudo único. Então fica claro a primeira conclusão de que todo discurso que fale sobre algum aspecto social da idade média será um recorte geográfico e temporal preciso.
No segundo capítulo do livro logo de inicio nos é apresentado a premissa primordial para se pensar a idade média e as relações do homem em tal período, seria a cosmovisão do homem de tal época, onde ele agiria de acordo com uma ótica de “integridade absoluta do universo” (p.41). O individuo seria a expressão do todo,  no particular podemos encontrar o universal, mas sem dicotomia, tudo é um amálgama.
O Beijo de Judas, na Capella degli Scovegni.
A terra era vista como um ser vivo, habitado por uma hierarquia de espíritos, tudo era dotado de propriedades mágicas. O individuo espelha o mundo em miniatura. Devido a isso há sistemas elaboradíssimos  de saber, onde tudo se relaciona e complementa. A quiromancia, alquimia e processos divinatórios são chaves de entendimento para um mundo tão vasto e complexo. Isso já diferencia da nossa forma racional e mecanicista de pensar. Somos humanos constituídos por um saber diferente, nosso olhar jamais se aproximaria de tais humanos que viveram a tantos séculos atrás.

Todo o entendimento era embebido por uma simbologia muito forte, havia uma sensibilidade acerca do mundo habitado. Até mesmo a coabitação de animais e humanos fazia parte dessa organização, e não se devia como muitos pensam à condições econômicas desfavoráveis.  “O medieval só conhecia um modo para modificar as coisas: o milagre” (p. 44). Tudo então era possível, a ordem das coisas podem ser quebradas a qualquer momento. A crença mais elevada que podemos encontrar em alguém hoje era a crença comum do povo, a manipulação dos elementos certos podem alterar tudo. O poder de cura do rei, crescimento da astrologia, adoração a subentidades denominadas santos, que podiam alterar o curso dos eventos e até mesmo provocar pequenos desvios na vontade divina.

“Os carrascos eram incessantemente procurados como fornecedores de poções miraculosas, derivadas da gordura dos executados. [...] peixes introduzidos na vagina -e ai mantidos até que morressem -, posteriormente temperados e cozidos, eram oferecidos ao amante, junto com toda a força afrodisíaca e geradora que amealharam.” (p. 45-46)
Niccolò e Matteo Polo entregando uma carta de
Kublai Khan para o papa Gregório X em 1271.
Havia uma proximidade entre o terreno e o espiritual como na época do velho testamento, onde Deus falava diretamente com alguns escolhidos, e as devidas ações terrenas tem ecos celestiais e vice-e-versa. Esse sujeito começa a mudar à partir do século XVI e XVII, onde a crença no mundo mágico começa a dar lugar ao mundo desencantado regido por leis físicas, porém esse processo foi lento, salvo detalhe que ainda hoje podemos encontrar pessoas com tais crenças, embora sejam cada vez mais escassas. Alocado no processo histórico há momentos de maior ou menor crença, há focos, não seguindo uma linha retilínea de mudança da racionalidade. Geralmente o desencantamento ia apagando as crenças antigas com uma racionalidade progressista cada vez mais ferrenha, devido a isso os grandes embates que podemos reconstituir na história do pensamento.
O sonho tem grande influencia na realidade do homem medieval, há uma enorme gama de livros sobre a importância dos sonhos na sociedade medieval, assim efetuando grande importância no estrato social da época. Guerras eram feitas com base nas interpretações de sábios. O sonho “SEMPRE” tinha algo a dizer, caberia ao homem desvendar a mensagem. Tudo isso muito antes de Jung. (Rsrs)
Ilustração da Peste na Bíblia de Togemburgo (1411).

A aparência continha tudo, não era necessário opor ela a algo mais oculto. Da mesma forma que a crença na aparência não era negada por um essencialismo. A solidão por sua vez era vista com receio, os eremitas eram personagens fortes para a época, mas havia uma dicotomia entre os critérios de verdade do mundo, dois caminhos para alcança-lo, afastar-se do mundo para observar alguma verdade sobre ele como no caso os eremitas, ou misturar-se com ele. Ser envolvido por tudo que compõe as camadas mais distintas da sociedade. Embriagar-se, perder-se em meio a sobreposição de elementos. Esse segundo caminho era o mais adotado, pois ia de encontro com as premissas que constituíam o sujeito social.
Todos esses fatores colaboram para reafirmar o pensamento vigente, devido a isso não era possível um maior florescimento da racionalidade objetivista, como nos é dito no trecho a seguir:
“[...] a objetividade cientifica de certo modo, era incogitável nessa cultura,  tendo em vista que nem se admitia que o objeto fitado tivesse qualidades passivas [...], nem muito menos, se supunha o valor absoluto de um olhar que se pretendesse despojado de tendencias subjetivistas.” (p.51)
O clero detinha grande poder, sua aura mágica era imensa. Dentro da hierarquia existente eles estavam no topo, eram detentores de grande poder manipulatório de forças divinas. Até mesmo a distancia dos mosteiros era encarada como um castigo necessário para a purificação dos monges. O distanciamento era ligado à punição onde o exílio acaba e ele é então fundido novamente à comunidade.

Catedral de Notre-Dame de Paris, uma das catedrais
 góticas mais famosas do mundo.
No capítulo três a temática é a fusão entre espirito e matéria, seguindo a continuidade daquilo que já foi dito era comum a não separação entre o material e imaterial. A concepção dualista cartesiana só surge no fim da baixa idade média, assim sendo um dos fatores fundamentais para a objetividade cientifica nascente. Essa fusão é reinante até então,  o debate acerca da materialidade humana é difundido em grande escala apenas no fim do XVII com ápice no XVIII com os materialistas franceses. Claro que sempre podemos localizar casos isolados de que buscavam distanciar espirito e matéria anteriormente, mas isso só ocorreu de forma  diversificada com a modificação da mentalidade, a transição do homem medieval para o moderno. O corpo medieval não era um simples continente da alma, era um lugar onde se consolidava a condição humana.

Vivemos em um mundo onde não a espaço para a dor, qualquer sofrimento é sanado por algum remédio moderno, buscamos aplacar a dor, sempre fugindo dela e em busca de prazer. Mas isso é algo contemporâneo. Não havia antidepressivos, analgésicos e anestésicos em profusão como há no mundo contemporâneo. A relação com  a tortura é revelada ai, já que havia um mundo de sofrimentos para aguardar o pecador após a morte, então a tortura seria apenas um adiantamento de dores futuras. Nos é dito no trecho a seguir:
“No caso da mentalidade medieval, era possível justificá-la como uma ação sobre o espírito, por meio daquilo que chamaríamos de corpo: todos os sofrimentos impingidos ao corpo eram sofrimentos estabelecidos sobre a alma e vice-versa. [...] Ela anteciparia, nesta vida, o pagamento de uma divida, potencialmente reservado para a outra.” (p.57)
Essa concepção de não separação de corpo e matéria influenciava a relação após a morte, não sendo assim considerado meros cadáveres. Abrir um corpo era bulir no espírito, desrespeito. A dissecção era um tabu, impedindo em grande parte o avanço do conhecimento da medicina, havendo ainda assim uma grande imposição de rituais para acompanhamento da prática.
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, mostra uma autópsia.

O dualismo cartesiano surge então para efetivar a separação entre espírito e matéria, assim sendo seguiram caminhos distintos. A lógica mecanicista começa pouco a pouco a se impor nas concepções sobre a matéria corporal “o corpo é desencantado” (p.59). A dor começaria a ser reduzida ao neurológico. O corpo na cosmovisão medieval não poderia nem teria como ser objetificado, contrário a visão de pejorativa de putrefação pós medieval.  
Na época medieval “a concepção predominante de morte era a de que esta é um ato de vida, um sono” (p.62), tudo se fundia e se interpenetrava. Não há registros de tal época que apontem algum tipo de incômodo com a falta de separação entre corpos e cadáveres. O autor nos fala: 
“[...] aquilo que chamamos hoje de ‘lixo’ não constituía coisa  a ser banida, expulsa ou jogada fora. O lixo era jogado ali mesmo ou nas imediações. Daí o aspecto de amontoamento das cidades medievais.” (p.62-63)
O corpo na história se revela então um livro essencial para aquele leitor que busca se aprofundar no entendimento da idade média, já que apresenta alguns traços que são presentes mesmo com a extensão milenar do período. A integralidade do ente, e a não separação de espírito e matéria moldam toda a intelecção do mundo do homem medieval. Toda a arte do período então só pode ser compreendida pela ótica da cosmovisão medieval, entre a Arte desses dez séculos podemos destacar:
Arte bizantina
Arte islâmica
Arte dos povos germânicos
Arte merovíngia 
Arte carolíngia
Arte otoniana
Arte românica
Arte gótica
Arte manuelina



Bibliografia:

Rodrigues J. C. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.